São Paulo, domingo, 11 de julho de 2004

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TENDÊNCIAS/DEBATES

A "medida provisória" do Judiciário

CLÁUDIO BALDINO MACIEL

A reforma do Judiciário que teve, no fim da semana, seu texto básico aprovado em primeiro turno no Senado contém um dispositivo que atinge duramente o Poder Legislativo, já fragilizado pelo uso indiscriminado de medidas provisórias pelo Executivo. Trata-se da chamada súmula vinculante, apontada como solução para o bom funcionamento da Justiça. De acordo com o texto aprovado, no momento em que o Supremo Tribunal Federal criar uma súmula, ou seja, o extrato de uma decisão reiterada sobre determinada matéria, todos os juízes do país, e também a administração pública, terão que acatá-la e aplicá-la automaticamente.
Os parlamentares, que já se acostumaram a ceder espaço para o Executivo legislar por meio de medidas provisórias, agora parecem se conformar com o fato de ministros do Supremo editarem súmulas que são normas com força, abrangência e eficácia de leis. Na verdade, mais eficazes: são normas abstratas, gerais e universais, como leis, mas com efeitos retroativos que as próprias leis não têm. Mais do que medidas provisórias, porque nem sequer precisam da aprovação posterior do Legislativo.
A súmula vinculante produzirá juízes carimbadores de soluções prontas, vinculados a uma nova jurisprudência "prêt-à-porter" do Supremo, sacrificando assim importantes princípios constitucionais e legais, dentre eles o da ampla defesa, do contraditório e do juiz natural. E não se diga que a aparente finalidade do dispositivo -desafogar o STF de casos similares- justifica a dramática perda da independência jurídica de todos os juízes brasileiros, pois existem várias outras maneiras, mais simples e eficazes, de evitar o inchaço de processos naquele tribunal. Basta alterar o sistema recursal, com coragem para enfrentar os interesses corporativistas que se opõem a isso, neste caso, sem o efeito paralisante da dimensão criativa da jurisprudência dos outros tribunais do país.
O Legislativo, porque não compreendeu a real extensão e profundidade dos efeitos da súmula vinculante, dará um tiro no próprio pé: renunciará a importante parcela da prerrogativa institucional de legislar. A proposta é sem dúvida temerária. O Judiciário tem a vocação para decidir caso a caso, concretamente, nos limites das partes em conflito. O STF, em face da matéria que julga, já alargou suficientemente tais pressupostos e o alcance de suas decisões. No entanto ir além disso significa desconhecer que só a lei -e não a decisão judicial- deve ter caráter genérico, abstrato e universal.
A emenda, portanto, consagra no Supremo Tribunal Federal -de composição sujeita à indicação discricionária do Presidente da República e a mera aprovação do Senado Federal- a possibilidade de definir o alcance, em abstrato, das normas editadas pelo Congresso Nacional, com efeitos que não obrigarão somente as partes, mas a sociedade toda. E mais: com força retroativa de que as próprias leis não dispõem. É poder demais para o Supremo. O que se dá a um, de outro se retira: fica o STF muito mais potente e o Legislativo bem mais esvaziado no alcance de sua atividade fundamental.


O Legislativo, porque não compreendeu a real extensão dos efeitos da súmula vinculante, dará um tiro no próprio pé
Para piorar a situação, maiores serão a abrangência e a eficácia das súmulas vinculantes -ou da parcela de poder de que se demite o Legislativo, o que dá no mesmo-, quanto mais "abertos" forem os conteúdos das normas legais, o que permite amplíssimas possibilidades de interpretação, fenômeno crescente e uma das causas do visível processo de judicialização da política nacional.
O Legislativo, nos temas mais relevantes, fará normas que só terão seu alcance definitivo fixado de acordo com a abrangência que lhes dispuser o Supremo em caráter abstrato e universal, dispondo esse tribunal, nos limites incertos da ampla possibilidade de interpretação, sobre o que o Legislativo "quis dizer", e transformando tal disposição em norma abstrata e universal definitiva. Diferentemente das medidas provisórias, tais "normas" do STF nascerão definitivas, sem depender de apreciação parlamentar posterior.
O assunto atinge o próprio sistema de divisão de poderes. Ao entregar ao Judiciário o poder de normatizar abstratamente a vida social através de súmulas vinculantes, com eficácia maior do que a das leis, comete o Legislativo o grave equívoco político de, compartilhando prerrogativas hoje exclusivamente suas, uma vez mais abrir mão de significativa parcela de seu poder. Antes para o Executivo, agora para o Supremo.
A súmula vinculante será mais do que a medida provisória do Judiciário. E o Parlamento restará, por decisão própria, reduzido a uma expressão incompatível com o modelo republicano de tripartição de Poderes.

Cláudio Baldino Maciel, 48, desembargador do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, é o presidente da AMB (Associação dos Magistrados Brasileiros).





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