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CARLOS HEITOR CONY
Parábola social
RIO DE JANEIRO - Maior produtor mundial de melancia, o povo daquele país vivia tragicamente dividido entre aqueles que cortavam
aquela fruta no sentido longitudinal e aqueles que a cortavam lateralmente. Era uma guerra feroz,
que remontava a cinco séculos, desde que Cornélio 2º, o Desditoso, se
apossara do trono e fundara a dinastia da qual o rei atual era o derradeiro rebento.
Nos últimos tempos, cidades foram sitiadas, colheitas dizimadas,
todos passavam fome, nem melancia se podia comer. Fosse qual fosse
o partido, havia sempre um inimigo
que o degolava porque cortara a fruta de forma errada.
Os jornais de cada facção se atacavam com bárbara violência, os
adversários eram chamados de sicofantas, e embora ninguém soubesse o que era sicofanta, todos
imaginavam que devia ser uma
ofensa terrível, daí que os ânimos,
que já estavam quentes, ficavam
quentíssimos. Injuriados, todos
matavam velhos, senhoras, crianças e animais domésticos. Defloravam-se donzelas.
A situação chegou a tal ponto que
o rei decidiu intervir, convocando a
assembléia geral, que não se reunia
desde o reinado de Cosme 6º, o Infortunado. Na assembléia, tiveram
assento os principais líderes dos
dois lados e, após cinco dias e cinco
noites de debates homicidas, chegaram a um consenso: transferiam ao
rei o poder de decisão. Com sua sabedoria e sua experiência em dirimir crises morais e institucionais,
certamente baixaria um decreto
que acabaria com a discórdia na
qual o povo se engalfinhava.
Ouvidas as partes, o soberano
meditou cinco dias e cinco noites e
baixou um decreto que tomou o número 53.697. Tinha um único artigo
e um único parágrafo: "A partir desta data, as melancias devem ser cortadas pelo lado certo. Parágrafo
único: revogam-se as disposições
em contrário".
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