|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
CARLOS HEITOR CONY
A bela e a fera
RIO DE JANEIRO - Um dos desejos de minha infância foi habitar um palácio como o de "A Bela e a Fera", evidente que sem a fera. Tinha tudo, do
bom e do melhor naquele palácio. As
luzes se acendiam à passagem da
moça, a mesa estava sempre posta,
havia solidão e silêncio, ninguém enchia o saco dela, a fera providenciava
tudo e ainda fazia o favor de não
aparecer, não queria assustá-la.
Eu imaginava um palácio mais
modesto, seria a minha própria casa,
apenas com um acréscimo: em todas
as paredes haveria umas torneirinhas que despejariam guaraná no
meu copo. Eu era louco por guaraná,
ficava triste quando tomava um,
confinado numa garrafa banal, que
mal dava para encher um copo.
Queria mais e muito, daí que sonhava com torneiras em todas as paredes, bastaria abri-las e o guaraná
geladinho jorraria para matar a minha sede e me tontear de prazer.
A injúria do tempo, somada ao desgaste dos anos, sepultaram o delírio,
mas fui fiel a ele, não tive outros pela
vida afora. Esqueci a bela e a fera, o
palácio encantado, as torneirinhas
jorrando guaraná.
Eis que, deixando de ler historinhas
infantis, de repente descobri um sucedâneo, bem verdade que às avessas: a
internet. Ela não me deslumbra como os contos de Grimm e Perrault.
Pelo contrário, me aterroriza, mas
tem alguma coisa de encantado. Toda vez que abro a caixa postal, é como se abrisse a torneirinha daquele
palácio que a memória não esqueceu
mas a vida demoliu.
Não recebo o guaraná mágico para
matar minha sede e me tontear de
prazer. Recebo mensagens propondo
regimes de emagrecimento, macetes
para aumentar o tamanho do pênis,
oferecem-me terrenos que não quero
comprar e viagens que não pretendo
fazer. Vez ou outra, pinga uma gota
de afeto -mal dá para encher o copo
e embromar a sede.
Ouvi dizer que a internet está na
idade da pedra, mais um pouco ela
poderá dar-me mais e melhor. Um
dia abrirei o computador e terei o
guaraná que não mereço.
Texto Anterior: Brasília - Eliane Cantanhêde: Do sonho ao pesadelo Próximo Texto: Demétrio Magnoli: Constituição do racismo Índice
|