São Paulo, segunda-feira, 12 de março de 2007

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Para um debate entre surdos

TALES AB'SÁBER


Já que altos problemas filosóficos, espirituais e estéticos estão em voga em nosso meio, eu também queria dar minha opinião


É SINTOMÁTICO que, no momento adiantado de crise concreta do mundo em que vivemos, quando nosso país dá um radical espetáculo de conformismo, o campo religioso, com suas soluções mágicas, manipulatórias e, salvo honrosas exceções, bem adaptadas à ordem da injustiça real, se coloque como a única medida válida das coisas humanas.
Uma vez que altos problemas filosóficos, espirituais e estéticos estão em voga em nosso meio, eu também gostaria de dar a minha opinião, confessando o patético desses "humanitismos" de jornal, incluindo aí o meu próprio. Mas, no caso da avaliação de Luiz Felipe Pondé sobre o sentido de nossa crise, vale explicitar uma grande diferença.
Dada a torção que o interesse concreto do capital operou no interior da razão e sua possibilidade prática -para evocarmos um antigo pensador-, dado o fato de que há limites na natureza e de caráter anômico na vida social para o ilimitado processo de acumulação capitalista e sua acumulação de uma história de catástrofes -como escreveu outro antigo pensador-, estamos diante de uma encruzilhada real, que exige trabalho simbólico e deslocamento de posições que se mantinham estáveis pela força coercitiva de repetição do que poderíamos chamar de "a máquina do mundo".
Creio que esse trabalho não vai se dar a tempo de salvar a nossa pele e, muito menos, como preferem outros, o nosso espírito.
Como a crise natural e humana é séria, e como os agentes globais e locais estruturados, até ontem, se refestelassem no rebu ideológico de um mundo que teria se redimido na forma da sociedade de classes liberal, competitiva e injusta, não há resposta instrumental efetiva para o nosso mal, feito por nós, e ao alcance de nenhuma mão. Além disso, talvez já saibamos que qualquer prática social outra deve evitar exatamente a clivagem reificante e politicamente interessada própria ao aspecto instrumental da razão, cujo pacto é com a reprodução automática deste mundo.
O exercício da crítica, cujo momento é universal, a face melancólica de uma razão que se tornou refém das práticas sociais deformadoras de toda virtualidade no humano que não fosse a tocada pelo mercado, é o único elemento concreto para operar um mundo quase perdido, que precisa alterar suas coordenadas, mas não deve fazê-lo.
Certos horizontes desejáveis são conhecidos: negociação universal que garanta o reconhecimento integral do lugar e do amplo direito de existir do outro no mundo, suspensão do imperativo social da exploração da natureza e do homem pelo homem, superação do modo de subjetivação definido exclusivamente pelo interesse individual isolado, em busca de uma nova articulação comprometida de eu, outro e mundo, incluindo, como meu pai sempre diz, o direito à vida das gerações futuras e de evitar alterações bruscas no ritmo do planeta...
Essas noções racionais e modernas, sabe-se, foram vencidas e deformadas em gigantescas guerras reais e enviadas ao espaço insólito do utópico, embora configurem um ideário que vai se tornando, cada vez mais, apenas necessário. Pensá-las é aproximar-se da articulação de eros e civilização, como se dizia em outro tempo.
Como essas questões básicas, e ainda outras, que apontam para o trabalho sobre um não-saber concreto a respeito de uma nova ordem humana real, não estão pautadas em nenhum fórum efetivo de nosso tempo, capaz de alterar de fato a estrutura produtiva repetitiva deste mundo blindado e aquecido, um potencial não realizado da razão moderna paira sobre nós como um fantasma, uma negativização desrealizadora da vida.
O núcleo vazio, mas socialmente positivado, dessa verdadeira dissociação no sentido amplo do humano, para lembrarmos uma noção cara ao psicanalista Donald Winnicott, abre um espaço psicopolítico para toda ordem de formulações que nos protejam, quando nada mais nos protege de nós mesmos, dos que preferem confiar diretamente em Deus ou no mistério para dar conta de nosso mal demasiadamente humano ou para a alucinação que vem do todo, como a perda de limites fantástica do fetichismo da mercadoria deixa claro, o mundo dos ricos alucinados entre si.
Há também os que gostariam de exterminar entre nós o trabalho intelectual -ou o intelectual-, que seria o culpado do mal no mundo, irremediavelmente incapaz de avaliar uma singela e desinteressada obra de pura literatura.
Entre as alucinoses repostas e sobrepostas no nosso momento da ordem capitalista, o regime do fascismo de consumo, temos de lidar com os que preferem sonhar com um conhecimento mágico passado, cujo núcleo seria a pergunta abstrata aristotélica sobre o móvel primeiro, que nos garantiria a presença de Deus, o texto básico, o "Eclesiastes", e o modelo cultural, a Idade Média, religiosa, obscurantista e estruturalmente injusta.
Há quem prefira ter fé em outras virtualidades humanas.

TALES A.M. AB'SÁBER , psicanalista, é membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae e professor da Escola da Cidade. É autor de, entre outras obras, "O Sonhar Restaurado - Formas do Sonhar em Bion, Winnicott e Freud" (Prêmio Jabuti 2006).


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