|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
O migrante e os usineiros
RICARDO ANTUNES
O lulismo é expressão de um governo que fala para os pobres, vivencia as benesses do poder e garante a boa vida aos grandes capitais
EM ARTIGO anterior ("Tendências/Debates" de 3/1), indicamos o pragmatismo, a conciliação e o messianismo como elementos
fortes da fenomenologia do lulismo.
Quais seriam os traços ontológicos
constitutivos desse fenômeno?
Lula é a expressão pública mais
bem-sucedida do "self made man" político do Brasil recente: migrante do
Nordeste brasileiro, labutou no ABC
como torneiro mecânico e se tornou a
principal liderança do Sindicato dos
Metalúrgicos de São Bernardo do
Campo.
Sua viva espontaneidade e real representação dos metalúrgicos, sua
ação sindical corajosa e recusa à política tradicional foram responsáveis
diretos por esse significativo salto.
Desde a segunda metade dos anos
1970, liderou as históricas greves do
ABC, participou da fundação do PT e
da CUT (Central Única dos Trabalhadores), foi cassado da presidência do
sindicato pela ditadura militar.
Durante a década de 1980, esteve
presente em praticamente todas as
lutas sociais e políticas importantes:
nas incontáveis greves, nos embates
eleitorais, na constituinte, até as memoráveis eleições de 1989, em que sofreu um embuste eleitoral profundo.
De metalúrgico, tornou-se representante, o mais vigoroso, das forças
sociais do trabalho. Do ABC para São
Paulo e daí para o conjunto do país.
Sua extração social era límpida: migrante de origem e metalúrgico de alma, teve nessa fase muito mais acertos do que erros -quando se procura
fazer uma retrospectiva histórica sóbria, nem "ex post" nem apologética.
Lula era uma expressão típica dos
"peões" do ABC, como os metalúrgicos se autodenominavam.
Mas a década seguinte, a dos anos
1990, trouxe mutações profundas,
inicialmente com Fernando Collor de
Mello e depois com Fernando Henrique Cardoso. O país estancou, os assalariados se informalizaram e o desemprego estrutural explodiu. O país
se desertificou.
O PT e a CUT sofreram na carne esse processo. E Lula, o ex-metalúrgico,
pouco a pouco se distanciava de sua
categoria (e classe) de origem, assumindo um "modus vivendi" mais próximo das classes médias, como transparece no depoimento que deu a João
Moreira Salles em "Entreatos".
Seu crescente papel de "tertius"
dentro do PT, com um séqüito de lulistas sempre dando suporte, ampliava sua tendência que oscilava entre a
liderança e o mandonismo, ainda que
nublada pela (aparência de) simplicidade em suas ações.
Como seus seguidores fiéis jamais
faziam nenhum reparo, Lula, acentuando seu traço bonapartista, consolidava a imagem de um farol sempre
iluminado que mostrou sua plenitude
no poder, depois das eleições de 2002.
Distanciado de sua origem operária, submerso no novo ethos de classe
média, galgando degraus ainda mais
altos na escala social, tudo isso foi
convertendo Lula em uma variante
de homem duplicado que passou a admirar cada vez mais os exemplos daqueles que vêm "de baixo" e vencem
dentro da ordem. Daí sua admiração
por personagens como Zezé di Camargo e Luciano, para ficar nesses
exemplos.
Sua nova forma de ser gerou uma
consciência invertida de seu passado
e um deslumbramento em relação ao
presente.
Preservada a empatia "direta" com
as massas, tendo se moldado celeremente pelo convívio com freqüentadores dos palácios, o lulismo, com
seus dotes arbitrais -num momento
em que as frações dominantes não
puderam garantir em 2002 a sucessão
presidencial-, se tornou expressão
de um governo que fala para os pobres, vivencia as benesses do poder e
garante mesmo a boa vida aos grandes capitais.
Uma espécie de semibonapartismo,
recatado frente à hegemonia financeira e hábil no manuseio de sua base
social, que vem migrando dos trabalhadores organizados para os estratos
mais penalizados que recebem o Bolsa Família. E para o qual o PT se tornou dispensável.
O que nos recorda o personagem
Felix Krul, de Thomas Mann, que,
após experimentar uma vida dúplice,
confessou: "Percebi que a troca de
existências não produziu apenas uma
deliciosa renovação mas também certa obliteração no meu interior -no
sentido de que todas as recordações
de minha vida anterior haviam sido
exiladas de minha alma".
O que ajuda a entender, então, por
que Lula agora é só elogios para os
usineiros.
RICARDO LUIZ COLTRO ANTUNES, 54, é professor titular de sociologia do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Unicamp (Universidade de Campinas) e autor, entre outros livros, de "Riqueza e Miséria do Trabalho no Brasil" (Boitempo, 2006).
Os artigos publicados com assinatura não traduzem a opinião do jornal. Sua publicação obedece ao propósito de estimular o debate dos problemas brasileiros e mundiais e de refletir as diversas tendências do pensamento contemporâneo. debates@uol.com.br
Texto Anterior: TENDÊNCIAS/DEBATES Claudio Weber Abramo: Parlamento capturado Próximo Texto: Painel Índice
|