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São Paulo, quinta-feira, 12 de junho de 2003

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TENDÊNCIAS/DEBATES

Democracia e paz no Iraque

EDUARDO SUPLICY

No dia 26 de maio passado encaminhei a Sérgio Vieira de Mello, alto comissário das Nações Unidas para Direitos Humanos e representante especial da ONU no Iraque, uma proposição sobre o desenvolvimento das formas de compartilhar as riquezas do Iraque entre a sua população. Trata-se da proposta de introdução, naquele país, do mesmo sistema de distribuição de renda que já funciona com absoluto sucesso no Estado americano do Alasca.
É a renda básica incondicional. Esse sistema, com algumas variáveis, já foi proposto em muitas sociedades ao longo da história. Na verdade, é um projeto que tem fundamento nas antigas escrituras do Velho e do Novo Testamento, nos ensinamentos do Alcorão e no livro dos hadith (registro de palavras e atos de Maomé) e ainda nos preceitos budistas. E também nos textos de Thomas More e de Thomas Paine, além dos estudos recentes de autoria de economistas como James Edward Meade, James Tobin e Philippe Van Parijs.
Num artigo publicado em 9 de abril de 2003, no jornal "The New York Times", chamado "Sharing, Alaska Style", Steven C. Clemons propôs que os Estados Unidos e a ONU considerassem a possibilidade de trabalhar com o petróleo do Iraque não só para a reconstrução do que foi destruído pela guerra recente, mas também como uma forma de ajudar a produzir uma democracia estável, expandindo o número de participantes na economia daquela nação.
Acredito que esse seria um exemplo promissor para o mundo, principalmente após a guerra e suas drásticas consequências para o povo iraquiano. O sistema seria indicado como um dos fatores da reconstrução do Iraque, especialmente porque o país possui a segunda maior reserva petrolíferas do planeta -apesar de ser possível seguir esse procedimento com base em qualquer riqueza gerada pela nação.
No Alasca, a idéia surgiu no início dos anos 60. O prefeito de Bristol Bay, uma pequena vila de pescadores, notou que ali era grande a riqueza gerada pela pesca, mas muitos de seus moradores continuavam pobres. Propôs, então, a criação de um imposto de 3% sobre o valor da pesca para criar um fundo que pertenceria a todos. Enfrentou muita resistência ao tentar convencer a população a aceitar a idéia. O trabalho de persuasão levou cinco anos e deu tão certo que, dez anos depois, Jay Hammond foi eleito governador do Estado do Alasca.


A renda básica incondicional, com algumas variáveis, já foi proposta em muitas sociedades


Em 1976, o governador Hammond declarou aos 300 mil residentes do Alasca: "Devemos pensar não só na nossa geração, mas também nas que virão depois. Já que o petróleo e outros recursos naturais não são renováveis, vamos separar 50% dos royalties gerados através da exploração desses recursos para um fundo que será acumulado e pertencerá a todos". A proposta foi aprovada não só pela Assembléia Estadual, mas também por referendo popular, com 76 mil votos a favor e 38 mil contra.
Hoje é considerado um suicídio político para qualquer liderança se colocar contra o sistema de dividendos do Fundo Permanente do Alasca, tamanho é o resultado positivo do programa. Os royalties que formam o fundo coletivo têm sido aplicados em investimentos imobiliários, em títulos de renda fixa dos Estados Unidos, em ações de empresas do próprio Alasca e em outras empresas, americanas e internacionais.
Em 1980, o patrimônio líquido do fundo era de US$ 1 bilhão. Hoje chega a US$ 25 bilhões. E todos que residem no Alasca há um ano ou mais, tenham nascido lá ou não, têm direito aos dividendos anuais, independentemente de sua situação social ou profissional. Esses dividendos eram de aproximadamente US$ 300 no início dos anos 80 e chegaram a US$ 1.550 no ano passado. Em nossa moeda, isso dá aproximadamente R$ 4.500 para cada um e significa que uma família média, composta por pai, mãe e dois filhos, pode contar com uma renda anual suplementar de R$ 18 mil. É fácil imaginar o que esse sistema representou e representa no desenvolvimento atual do Alasca.
Hoje, o Alasca é o Estado que tem a distribuição de renda mais igualitária dos Estados Unidos, graças ao fundo permanente. De 1989 a 1999 foram distribuídos 6% do seu PIB igualmente para todos os cidadãos -hoje cerca de 626 mil. Como resultado, durante a última década, enquanto a renda média das famílias 20% mais pobres dos Estados Unidos cresceu 12%, a das famílias 20% mais ricas cresceu 26%. No Alasca essa situação foi inversa. A renda média das famílias 20% mais pobres cresceu 28%, enquanto a das famílias 20% mais ricas cresceu 7%.
Esse é um exemplo para todas as nações do mundo e especialmente válido para países que têm grande necessidade de erradicar a pobreza e melhorar a sua distribuição de renda, como o Brasil. Economistas e cientistas sociais da Rede Européia de Renda Básica (Basic Income European Network, BIEN), fundada em 1986, têm demonstrado que esse programa é, sem dúvida, o mais racional para promover a justiça social.
No dia 29 de abril de 2003, perante o Comitê de Relações Exteriores do Senado, o secretário de Estado Collin Powell, respondendo a uma pergunta do senador George Allen sobre a proposta para que o povo iraquiano organizasse um tipo de referendo ou plebiscito para seguir o exemplo do Fundo Permanente do Alasca, disse: "Penso que isso vai dar certo".
Em sua pronta resposta à minha carta, Sérgio Viera de Mello afirma: "Levarei a sugestão à consideração das instâncias decisórias que presentemente administram o Iraque". Pois está "empenhado em que a presença das Nações Unidas venha mitigar o sofrimento da população iraquiana e contribuir para o desenvolvimento de instituições democráticas, a promoção e o respeito pelos direitos humanos, sem os quais não haverá paz e segurança naquele país".
Também penso que isso vai dar certo.

Eduardo Matarazzo Suplicy, 61, doutor em economia pela Universidade Estadual de Michigan (EUA), senador pelo PT-SP, é professor da Eaesp-FGV e presidente da Comissão de Relações Exteriores e Defesa Nacional do Senado.


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