São Paulo, sábado, 12 de setembro de 2009

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RUY CASTRO

O Brasil impermeável

RIO DE JANEIRO - Em 1500 e poucos, quando chegaram por aqui e conheceram os tupinambás, os portugueses se impressionaram com a voz macia dos guerreiros e a beleza de suas mulheres. Eu sei, isso parece receita de bossa nova, mas está na história do Brasil. Tais qualidades, dizia-se, eram provocadas pelas águas claras e leves do rio Carioca, que os indígenas bebiam e onde se banhavam.
O Carioca nascia no Corcovado, descia quebrando pelas encostas e, depois de se espalhar pelos futuros Cosme Velho, Laranjeiras, Catete e Glória, desaguava na praia do Flamengo. Com o tempo, vieram a ocupação do solo, a cidade, a poluição e, depois de séculos engolindo lixo humano e industrial, o rio Carioca, já quase à morte, foi canalizado. Hoje restam poucos trechos a céu aberto, e a maioria dos cariocas nunca molhou um dedo em suas águas.
Vida que segue e, principalmente durante os furores desenvolvimentistas de JK e do "milagre", canalizamos inúmeros outros rios urbanos, trocamos os últimos paralelepípedos por asfalto, derrubamos árvores para plantar concreto e cimentamos parques, terreiros e quintais. Enfim, impermeabilizamos o Brasil.
As cidades ficaram reféns dos automóveis. A ideia de salvar um rio, pôr abaixo um viaduto ou trocar uma marginal por um jardim -quando alguém se atreve a tê-la-, é tida como crime de lesa-trânsito. É normal: entre o carro e o cidadão, os governos sempre ficaram com o carro. Mas a natureza tem suas leis e, de tempos em tempos, convoca os deuses da chuva. Sem ter para onde ir, as águas se voltam contra nós.
Os tupinambás tiveram sorte: foram dizimados muito antes que o rio Carioca entrasse pelo cano. Já nossa agonia será mais longa. Podemos nos afogar nas mesmas águas que sonegamos ao Brasil quando decidimos asfixiá-lo.


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