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RUY CASTRO
O Brasil impermeável
RIO DE JANEIRO - Em 1500 e
poucos, quando chegaram por aqui
e conheceram os tupinambás, os
portugueses se impressionaram
com a voz macia dos guerreiros e a
beleza de suas mulheres. Eu sei, isso parece receita de bossa nova,
mas está na história do Brasil. Tais
qualidades, dizia-se, eram provocadas pelas águas claras e leves do rio
Carioca, que os indígenas bebiam e
onde se banhavam.
O Carioca nascia no Corcovado,
descia quebrando pelas encostas e,
depois de se espalhar pelos futuros
Cosme Velho, Laranjeiras, Catete e
Glória, desaguava na praia do Flamengo. Com o tempo, vieram a ocupação do solo, a cidade, a poluição e,
depois de séculos engolindo lixo
humano e industrial, o rio Carioca,
já quase à morte, foi canalizado.
Hoje restam poucos trechos a céu
aberto, e a maioria dos cariocas
nunca molhou um dedo em suas
águas.
Vida que segue e, principalmente
durante os furores desenvolvimentistas de JK e do "milagre", canalizamos inúmeros outros rios urbanos, trocamos os últimos paralelepípedos por asfalto, derrubamos árvores para plantar concreto e cimentamos parques, terreiros e
quintais. Enfim, impermeabilizamos o Brasil.
As cidades ficaram reféns dos automóveis. A ideia de salvar um rio,
pôr abaixo um viaduto ou trocar
uma marginal por um jardim
-quando alguém se atreve a tê-la-,
é tida como crime de lesa-trânsito.
É normal: entre o carro e o cidadão,
os governos sempre ficaram com o
carro. Mas a natureza tem suas leis
e, de tempos em tempos, convoca os
deuses da chuva. Sem ter para onde
ir, as águas se voltam contra nós.
Os tupinambás tiveram sorte: foram dizimados muito antes que o
rio Carioca entrasse pelo cano. Já
nossa agonia será mais longa. Podemos nos afogar nas mesmas águas
que sonegamos ao Brasil quando
decidimos asfixiá-lo.
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