UOL




São Paulo, domingo, 12 de outubro de 2003

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

DIAGNÓSTICO DIFÍCIL

Por estranho que pareça, a morte é um dos diagnósticos mais difíceis de fazer. E exigências da própria medicina, notadamente a de tentar suprir a demanda por órgãos vitais para transplantes, se encarregam de tornar a questão ainda mais problemática.
Mais ou menos até meados do século 20, a definição legal de morte em vários países não oferecia grandes dilemas: considerava-se alguém morto quando seu sistema cardiorrespiratório cessava de funcionar. Essa definição, como qualquer outra, embora resolva o problema pontual de quando proclamar alguém morto, está longe de esgotar a questão em seu aspecto científico.
É que, para a ciência, a morte é um processo, e não um evento. Cessado o fluxo sanguíneo e, consequentemente, o suprimento de oxigênio e de nutrientes para as células, diferentes tecidos começam a "morrer", em diferentes tempos, dependendo ainda de uma série de fatores ambientais. Mesmo num corpo sadio, há células morrendo constantemente. Quando morre o indivíduo? Não há uma resposta unívoca para a questão. A rigor, temos dificuldades até para definir o que é indivíduo. Basta um corpo com suas funções vitais intactas ou é necessário também que exista alguma forma de consciência?
Questionamentos como esses são pertinentes, mas pouco práticos. É possível que muitas das perguntas cabíveis nem tenham respostas. O melhor é renunciar a uma definição filosófica e cientificamente muito precisa e conformar-se com um critério legal que procure apenas ordenar as decisões concretas que precisam ser tomadas em torno da morte. E mesmo essa tarefa já é terrivelmente complexa e polêmica.
Atualmente, a maioria dos países trabalha com o conceito de morte encefálica. A idéia aqui é que existe um ponto a partir do qual a destruição das células do tronco cerebral é de tal ordem que o indivíduo, ainda que submetido a suporte ventilatório e cardíaco, não teria mais como recuperar-se, evoluindo necessariamente para o óbito. A noção de morte encefálica, bem como os primeiros protocolos para determiná-la, datam de 1968, logo depois da primeira cirurgia de transplante cardíaco. Para que se possa realizar esse tipo de procedimento, é necessário que os órgãos sejam retirados enquanto as funções vitais ainda estão mantidas.
E o problema é que os testes utilizados na determinação da morte encefálica -em especial o exame da apnéia- vêm sofrendo cada vez mais críticas de especialistas em todo o mundo. O Conselho Federal de Medicina (CFM) acaba de ser instado pelo Ministério Público a explicar a segurança do procedimento, que consiste em desligar, por dez minutos, os respiradores que mantêm o paciente em coma profundo. Há quem afirme que esse procedimento pode levar à morte um indivíduo com chances de recuperação.
O assunto é extremamente delicado e pode interferir diretamente na oferta de órgãos para transplante. Assim, é fundamental que o CFM responda ao questionamento de forma transparente e tecnicamente fundamentada. Que tenha, também, a maturidade para rever seus procedimentos se se chegar à conclusão de que é o caso de fazê-lo.
Ainda que num sentido mais amplo seja impossível responder exatamente quando a morte se torna irreversível, é preciso ao menos estabelecer um critério legal e um procedimento técnico aceitáveis para declarar alguém morto. A pior conduta aqui seria tentar ocultar do público as informações fundamentais.



Texto Anterior: Editoriais: JUSTIÇA NA BERLINDA
Próximo Texto: São Paulo - Clóvis Rossi: Uma pobreza só
Índice


UOL
Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.