São Paulo, quarta-feira, 12 de outubro de 2005

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TENDÊNCIAS/DEBATES

Anáforas e desaforos no Brasil petista

ROBERTO ROMANO

O século 18 gerou as luzes e a democracia, com as revoluções norte-americana e francesa. Ele agora serve como parâmetro de análises éticas e políticas. O governo abusa do fisco?
Examinemos o verbete "Impostos" da "Enciclopédia", publicada por Diderot e d'Alembert, obra muito lida no Brasil colonial. Na época, eram aqui proibidas a edição de livros, a indústria e as escolas de ciências e técnicas. Não por acaso, os inconfidentes quiseram instalar fábricas e universidades.


O governo confessa impotência diante das quadrilhas, mas arranca armas de quem possui endereço e paga impostos


A "Enciclopédia" os ajudou a pensar grande, sobretudo na ordem fiscal. Diz o verbete: "Se o direito do príncipe na percepção dos impostos é fundamentado nas carências estatais, ele só deve exigir tributo conforme as referidas necessidades, devolvê-los depois que elas forem satisfeitas, empregar o imposto produzido só para as mesmas urgências, não desviando os recursos dele provenientes para usos particulares ou em profusões para pessoas que não contribuem para o bem público".
Que tal ler o verbete no Congresso, onde impostos descabidos são votados e parte substancial das rendas públicas ficam no caixa dois com o nome indecente de "recursos não contabilizados"?
São Paulo iniciou uma campanha para mostrar o quanto o governo arranca dos nossos bolsos, sem retorno para a população. As CPIs e a imprensa são atacadas pelo presidente da República, para quem tudo é "denuncismo". O mundo político inocenta pessoas "que não contribuem para o bem público", enquanto o comércio e a indústria pagam impostos que não seguem para a educação, a saúde, a segurança pública.
No Brasil de hoje, os impostos não garantem o direito. Os escritórios de advocacia recebem ameaças contínuas e seus telefones sofrem escutas ilegais. Os réus perdem as garantias asseguradas no mais antigo direito. A polícia e alguns juízes, seguidos por um setor da mídia, negam que o réu é coisa sagrada e praticam o vilipêndio do acusado com algemas humilhantes. Tudo se faz para corroer as garantias constitucionais em prol da vingança, contra a justiça.
Os cidadãos, distraídos pelo espetáculo do arbítrio, não sabem que eles podem sofrer as mesmas vexações. A recusa das garantias jurídicas que pertencem aos indivíduos e aos grupos não se esgota neles, ruma para o coletivo, colhe cedo ou tarde a inteira cidadania. No mesmo ato em que ataca as livres investigações da imprensa e do Congresso Nacional, o governo pisa a dignidade humana e busca amestrar o público.
Em nossa terra, os impostos não asseguram a existência física. Voltemos ao século 18 democrático. Para reunir todos os poderes nas mãos dos dirigentes, sem debate amplo com a sociedade civil, foi aprovada uma lei que desarma cidadãos. Agora, é convocado um referendo para que os contribuintes digam "sim" ou "não". O direito à defesa da própria vida (nem Hobbes o recusa) exige mais do que uma afirmativa ou simples negação.
O governo, com a iniciativa mencionada, abusa do monopólio da força, tornando-o ilegítimo. O governo confessa impotência diante das quadrilhas que ameaçam a soberania espacial, pois chegam a decretar, sob os olhos da polícia, feriados para o comércio. Mas o mesmo governo arranca armas de quem possui endereço, emprego, paga impostos.
Diderot recomenda: nas conversas com os governantes, levem os homens honrados seus fuzis nas costas para "recordar" aos administradores que a força reside no povo soberano ("Apóstrofe aos Insurgentes da América"). Valentes quando arrancam impostos, fracos diante das quadrilhas, os ocupantes do poder almejam destruir a resistência dos cidadãos ao seu arbítrio e à violência das quadrilhas.
No Estado brasileiro, os que exigem impostos não respeitam a fé pública. E recordo finalmente o século 18, com o diderotiano "Sobrinho de Rameau". Nele, o personagem descrito como o "renegado de Avignon" se apodera da riqueza alheia fingindo amizade. Um idoso judeu lhe confessara escrúpulos quanto à carne de porco, o que poderia interessar à Santa Inquisição. Após meses, o esperto grita ao filho de David: "Estamos perdidos... perdidos... perdidos, fomos descobertos!". Atordoado, o velho lhe entrega bens para serem remetidos secretamente ao exterior, deles se apoderando o esperto.
Diderot desvela a técnica da anáfora no engodo. No dia 23/10/05, os brasileiros que pagam impostos serão desarmados; não têm defesa advocatícia respeitada nem segurança, e ouviram a Executiva Nacional do PT reiterar "as informações já prestadas a respeito do financiamento paralelo de campanhas: jamais tomou conhecimento, jamais autorizou, jamais discutiu, jamais orientou medidas neste sentido". Estamos longe do século 18, mas perto em demasia dos lamentáveis desaforos políticos. Na crise atual, imitar o moço de Avignon significa insultar a inteligência dos brasileiros.

Roberto Romano, 59, filósofo, é professor titular de ética e filosofia política na Unicamp (Universidade Estadual de Campinas) e autor de, entre outras obras, "Moral e Ciência - A Monstruosidade no Século 18" (ed. Senac/São Paulo).
@ - romanor@uol.com.br



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