São Paulo, segunda-feira, 12 de dezembro de 2005

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E o desenvolvimento industrial do Brasil?

KEVIN P. GALLAGHER

As estimativas oficiais sobre os benefícios da atual rodada de conversações sobre comércio internacional para os países em desenvolvimento são bastante irrisórias. Ainda assim, o setor agrícola brasileiro tem chance de sair-se vencedor.
No entanto, o Brasil parece estar disposto a sacrificar quase qualquer coisa por esses ganhos, incluindo a sua própria capacidade de estimular o desenvolvimento industrial.
As novas estimativas do Banco Mundial antevêem ganhos "potenciais" da Rodada de Doha na OMC (Organização Mundial do Comércio) para os países em desenvolvimento da ordem de US$ 16 bilhões, ou seja, menos de um centavo de dólar por dia e por pessoa no mundo em desenvolvimento. Isso em contraste com o mundo desenvolvido, cuja previsão de ganhos é de cerca de US$ 96 bilhões, 70% do total.
Nada muito animador para a maioria dos países em desenvolvimento. Mas o caso do Brasil é diferente. Sozinho, o setor agrícola brasileiro receberá 23% dos ganhos no mundo em desenvolvimento, ou seja, US$ 3,6 bilhões. Por si só, esse dado não quer dizer que os ganhos serão distribuídos em meio à população; mas, se fossem, eles resultariam em quatro centavos por pessoa.
Esses foram os ganhos. Mas, e os custos? Muitos economistas que tratam das questões de desenvolvimento têm mostrado uma crescente preocupação com a possibilidade de que países como o Brasil terminem sacrificando o terreno de suas políticas industriais, as mesmas que fizeram deles atores tão pujantes na economia mundial. Algumas indústrias-chave no Brasil, tais como as de aviação e motores, integraram-se à economia mundial por meio de uma mescla de mercados, tarifas, subsídios e utilização estratégica de investimento estrangeiro. As regras da OMC para tarifas industriais, serviços e política de propriedade intelectual fazem com que a situação se complique muito mais.
As regras da Organização Mundial do Comércio não apenas restringem a capacidade de nações como o Brasil formularem as suas políticas mas também lhes trazem custos econômicos. É difícil mensurar com precisão a maioria desses custos em termos de perda de competitividade industrial e prejuízos para a classe industrial brasileira, mas já existem informações disponíveis a respeito de algumas realidades.


Vale a pena obter ganhos em algumas poucas áreas dos interesses agrícolas à custa do restante da economia?

Paralelamente aos benefícios de US$ 16 bilhões para os países em desenvolvimento, a Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento (Unctad) prevê que as perdas nas rendas advindas de tarifas para os países em desenvolvimento, propostas no contexto das atuais negociações do Nama (da sigla inglesa para Acesso a Mercado Não-Agrícola), oscilarão entre US$ 32 e US$ 63 bilhões anualmente, ou seja, entre duas e quatro vezes os US$ 16 bilhões dos benefícios. Para o Brasil, as perdas projetadas pela tarifa Nama podem chegar à cifra de US$ 3,1 bilhões, quase a totalidade do benefício esperado para o Brasil nesta rodada de conversações da OMC.
De maneira talvez ainda mais significativa, as perdas de renda relacionadas à perda de patentes para os países desenvolvidos, de acordo com as novas regras de propriedade intelectual, são dramáticas. As estimativas do Banco Mundial sobre a quantidade de transferências de lucros Sul-Norte devidas à OMC são da ordem de US$ 41 bilhões anuais, ou seja, 2,5 vezes os US$ 16 bilhões de dólares aguardados como benefício para os países em desenvolvimento. De acordo com o Banco Mundial, o Brasil perde a cada ano US$ 530 milhões com essas transferências de lucros.
As perdas atuais de lucratividade podem chegar a seis vezes o valor dos custos de transferência. Um estudo do Banco Mundial e da Universidade Yale (EUA) sobre um tipo de antibiótico na Índia descobriu que as perdas líquidas anuais para a economia indiana eram de US$ 450 milhões. Os ganhos líquidos advindos de produtores estrangeiros, por sua vez, eram de apenas US$ 53 milhões por ano.
Além disso, estudos mostram que os custos de implementação para que os países em desenvolvimento cumpram os seus compromissos para com a OMC são da ordem de US$ 130 milhões anuais. Somem-se a esse número as perdas de tarifas e as transferências de patentes e esses custos de implementação alcançam a cifra de US$ 3,76 bilhões. Em outras palavras, a contabilidade final dos acordos da Organização Mundial do Comércio para o Brasil revela uma perda de US$ 160 milhões.
Ao formularem sua estratégia para a rodada de conversações de Hong Kong, que terá início em dezembro, os brasileiros deveriam perguntar-se se valem mesmo a pena os ganhos em algumas poucas áreas dos interesses agrícolas, à custa do restante da economia.

Kevin P. Gallagher é professor de relações internacionais na Universidade de Boston (EUA), pesquisador sênior no Instituto para Desenvolvimento Global e Meio-Ambiente na Universidade de Tufts (EUA) e editor do livro "Putting Development First: the Importance of Policy Space and the WTO" ("O Desenvolvimento em Primeiro Lugar: A Importância do Espaço de Política na OMC").
Tradução de Dermeval Aires Jr.


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