São Paulo, domingo, 13 de fevereiro de 2005

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CARLOS HEITOR CONY

Evocação

RIO DE JANEIRO - Nunca fui chegado a desfiles de escolas de samba -sei o que estou perdendo, mas passo relativamente bem sem eles. Mesmo assim, sempre me interessei pela apuração após a grande festa, não pelo desfile propriamente dito, mas pela torcida em que predominavam duas entidades que o Carnaval carioca tornou famosas: dona Zica e dona Neuma. Devem estar no reino dos céus, agora, sem necessidade de torcer pela Mangueira, da qual eram ao mesmo tempo sacerdotisas, oráculos e talismãs.
Com emoção e pasmo, acompanhava a aflição delas quando se apuravam os votos dos jurados relativos ao desfile mangueirense. Elas sofriam o diabo, e a imprensa em peso, rádio e TV juntos, se fixava nelas. A cada voto, as duas gemiam e choravam, não neste vale de lágrimas, mas na sala da Riotur. Ai, Jesus! Minha Nossa Senhora! Valei-me, Senhor do Bonfim! Ai que não agüento mais! Tenha misericórdia de nós!
Tiravam a pressão delas, temia-se por um desenlace. Nem sempre ganhavam, mas as súplicas eram as mesmas. Transcenderam ao Carnaval, aos desfiles, nada se fazia no mundo ou no Brasil sem que o pessoal da mídia as consultasse. Sem ouvir dona Neuma e dona Zica, perdia-se a bússola, nada se entendia de nada e tudo ficava dolorosamente problemático. Elas eram consultadas sobre a explosão daquela nave espacial, sobre a doença de Tancredo Neves, sobre a pílula do homem, os buracos negros do universo, as contas no exterior do PC Farias.
Sinto falta delas e acho que elas fazem falta ao Brasil. Ficou mais difícil encontrar o nosso caminho, optar pelos rumos de nosso desenvolvimento, estabelecer prioridades nacionais. Nem sei como estamos sobrevivendo sem elas.
Acredito muito nessas coisas. Até hoje não encontramos os ossos de Dana de Teffé, e atribuo todas as nossas mazelas a esse enigma não-decifrado. Minhas esperanças estavam centradas em dona Neuma e dona Zica. Mas elas se foram e nos deixaram no inverno de nossa desesperança.


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