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200 anos da guerra contra os botocudos
SÉRGIO DANILO PENA e REGINA HORTA DUARTE
Dois eventos importantes da história brasileira ocorreram no dia 13 de maio. Um deles é pouco conhecido e não é motivo para comemoração
DOIS EVENTOS importantes da
história brasileira ocorreram
no dia 13 de maio. O mais famoso e justamente festejado ocorreu
em 1888: a assinatura, pela princesa
Isabel, da Lei Áurea, que extinguiu a
escravidão no Brasil. O outro, bem
menos conhecido, aconteceu 80 anos
antes e também envolveu um príncipe, mas não é nenhuma causa para
comemoração.
Em 13 de maio de 1808, exatamente
há 200 anos, o príncipe regente dom
João (bisavô da princesa Isabel) assinou uma carta régia mandando "fazer
guerra aos índios botocudos". O que
levou dom João, que fugira de um
conflito europeu, a iniciar uma nova
guerra quase imediatamente após
chegar ao Brasil? Quem eram os botocudos, percebidos como ameaçadores
ao ponto de motivarem uma guerra
contra eles?
O nome "botocudo", derrogatório e
ofensivo, foi dado pelos portugueses a
diversos povos histórica e geneticamente heterogêneos do grupo lingüístico macro-jê que habitavam o
nordeste de Minas Gerais, o sul da Bahia e o norte do Espírito Santo.
Em comum, tinham o hábito de
usar discos de madeira no lábio inferior e nos lóbulos das orelhas para expandi-los de forma peculiar.
As rolhas
dos barris de vinho português eram
chamadas botoques -origem do cognome botocudos. Nômades e caçadores-coletores, caracterizavam-se por
extrema belicosidade.
Os botocudos não toleravam a presença dos lusos invasores e usavam
táticas de guerrilha para atacar fazendas, matar colonos e aterrorizar todos
os que se aproximassem de seus territórios. A carta régia os acusa de "praticar as mais horríveis e atrozes cenas
da mais bárbara antropofagia, ora assassinando os portugueses e os índios
mansos por meio de feridas, de que
sorvem depois o sangue, ora dilacerando os corpos e comendo os seus
tristes restos". Hoje, a maioria dos estudiosos acreditam que esse canibalismo pode nunca ter ocorrido.
Por que a guerra contra eles? Pelo
domínio do território que ocupavam.
Com a exaustão crescente dos depósitos auríferos em Minas Gerais, os portugueses se voltavam para a exploração da terra no interior do país.
A chegada de dom João agudizou a
situação: eram necessários víveres
para alimentar a corte e estradas para
transportá-los. Surgiram, assim, novos impulsos para a expansão das
fronteiras da civilização.
As terras brutas do nordeste de Minas, então cobertas de mata atlântica
verdejante, eram o alvo e o prêmio,
mas elas também abrigavam os irredutíveis botocudos. De certa maneira,
e com alguma liberdade de comparação, o nordeste de Minas era então o
que a Amazônia é nos dias de hoje.
Obviamente, os portugueses venceram a guerra, usando pólvora e aço.
Os índios que sobreviviam eram escravizados. Também foram usadas
armas biológicas -roupas e cobertores impregnados de vírus de varíola
eram deixados na floresta para uso e
contaminação dos índios.
Como escreveu o barão Johann Jakob von Tschudi, naturalista suíço
que visitou a região por volta de 1860:
"Os portugueses adotaram os meios
mais infames para atingir esse objetivo. [...] Nenhuma nação européia se
rebaixou tanto para manchar seu nome e sua honra como Portugal". Mas
ele adiciona: "Nos últimos tempos,
apesar de já existir uma Constituição
brasileira, que, infelizmente, tem sido
implementada de forma muito precária, a guerra de destruição contra os
índios na província de Minas Gerais
ainda continua".
Hoje, os botocudos não existem
mais. Seus descendentes, os índios
krenak, somam poucas centenas de
indivíduos. Tampouco há florestas
verdejantes no nordeste de Minas.
Predomina o semi-árido e a região é
uma das mais pobres do Estado.
Ensina a sabedoria popular que
quem ignora sua história está condenado a repetir os mesmos erros. A
guerra contra os botocudos é um episódio importante da nossa história,
com mensagens relevantes para a
moderna sociedade brasileira.
Assim, no dia 13 de maio, ao celebrar a abolição da escravatura pela
princesa Isabel, também devemos
nos lembrar da carta régia de seu bisavô, o futuro dom João 6º, que perseguiu, escravizou e matou botocudos,
levando à virtual extinção de um conjunto de bravos povos indígenas.
SÉRGIO DANILO PENA, 60, professor titular do Departamento de Bioquímica e Imunologia da UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais), e REGINA HORTA DUARTE ,
44, professora do Departamento de História da UFMG, são
professores residentes do Instituto de Estudos Avançados Transdisciplinares da UFMG no período 2008-2009.
Os artigos publicados com assinatura não traduzem a opinião do jornal. Sua publicação obedece ao propósito de estimular o debate dos problemas brasileiros e mundiais e de refletir as diversas tendências do pensamento contemporâneo. debates@uol.com.br
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