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CARLOS HEITOR CONY
Heranças de junho
RIO DE JANEIRO - Menino carioca, não gostava de melado nem de rapadura. Embora não fosse rico, mas remediado, porque tomava muito remédio, achava que tanto o melado
como a rapadura eram coisa de gente
que não tinha outra coisa para comer.
Estranhava a gula do pai, que adorava um melado que vinha numa lata verde e dourada, ""Fios de Ouro",
made in Campos -dizia o rótulo.
Colocava batata-doce assada no prato e despejava os tais fios de ouro em
cima. Gemia de tanto prazer.
Eu preferia bifes com ovo em cima.
Em matéria de sobremesa, vendi a alma diversas vezes ao Demônio por
bananas fritas. Não entendia a esganação do pai em cima do melado.
Não o acompanhava, ficava só
olhando, enjoado e, ao mesmo tempo, fascinado.
Por que estou lembrando isso? Hoje
é festa de santo Antônio, o grande dia
dos anos mais antigos do passado.
Havia balões no céu e fogueiras na
terra. Era obrigatório comer batata-doce com melado -eu não comia,
mas o pai comia por ele e por mim.
Passou o tempo, passaram os balões
e as fogueiras, cresci contra a vontade, mas todos os anos, a cada 13 de
junho, eu ia ver o pai cumprir aquela
liturgia sagrada.
Aos poucos, continuei não gostando, mas aceitando aquela sobremesa
de pobre como um sacramento, um
alimento dos deuses, exclusivo do dia
de santo Antônio, santo que fazia o
pai achar as chaves que perdia.
Ontem, bati umas mercearias antigas, lá para as bandas da Saúde, procurando uma lata do tal melado feito
em Campos. Não achei. Parece que
não o fabricam mais. Recusei um melado vil, em garrafa escura, parecia
cachaça estragada.
Como enfrentar o dia de hoje? Só
me resta esperar pela madrugada,
que me trará aquele balão solitário
que soltam todos os anos, o ""Rei dos
Reis", que passará pelo céu em silêncio, com seu formidável ventre cheio
de luz.
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