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São Paulo, sexta-feira, 14 de fevereiro de 2003

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TENDÊNCIAS/DEBATES

Carros blindados e miséria

MAURO MORELLI

Sob o jugo impiedoso do mercado, iniciamos o terceiro milênio com elevado grau de degradação ambiental e de exclusão social. Como conciliar a preservação do ambiente e a paz social com o desenvolvimento econômico? Eis o nosso dilema.
O conflito entre capital e trabalho, coisa do passado. O império do mercado caracteriza-se pela especulação desenfreada e pela ausência de compromisso com qualquer povo. A produção de alimentos segue essa lógica. Enquanto alimento for mercadoria, haverá fome no planeta. O mercado não tem por objetivo garantir o direito humano básico ao alimento e à nutrição.
O controle dos recursos naturais ampliará e intensificará a guerra que se instala nas relações entre povos e vizinhos. Cresce a riqueza concentrada nas mãos de poucos, enquanto 1 bilhão se afoga na miséria.
A Europa e outros espaços sociais de Primeiro Mundo sentem-se ameaçados por migrantes esfaimados que rastejam como lagartas que devastam plantações ou invadem celeiros para saciar a fome.
Nos grandes centros urbanos, condomínios guardados por sistemas sofisticados de vigilância abrigam seres humanos e outros animais, que não mais podem circular com liberdade nas cidades onde imperam corrupção, idolatria, fome e violência.


Para muitos detentores do poder, os pobres são responsáveis pela própria miséria e ameaçam a paz e a vida no planeta


Cães são despojados de jóias e de outros ornatos, ricos se vestem de andrajos, e sobras das mesas são coletadas para minorar sofrimentos e agruras dos menos aquinhoados pela sorte!
Como estratagema para salvar a própria pele, promovem-se campanhas de combate à fome que não se fundamentam no respeito à dignidade humana e nem exaltam a vocação à vida em comunhão.
Tecnologia de ponta é empregada para garantir a segurança física de um número cada vez mais reduzido de adoradores do mercado, em cujos templos povos inteiros são imolados para acalmar as tensões ou para saciar o apetite do Baal da modernidade.
Enquanto se preparam estações espaciais que permitam à humanidade sobreviver e posteriormente migrar para outras regiões do universo, os atuais condomínios serão transformados em estufas com temperatura ambiental adequada para a preservação da espécie ameaçada pela barbárie da civilização.
À frente de prefeituras, secretarias e ministérios, encontram-se governantes que propugnam cidades limpas e livres do pesadelo da convivência com os refugos da ordem econômica. Para muitos detentores do poder político e econômico, os pobres são responsáveis pela sua própria miséria. Pior ainda, uma ameaça à paz e à vida no planeta. Exterminem-se os pobres e seus filhos, e o mundo estará salvo!
Além de cestas básicas e contraceptivos, será distribuído um bilhete compulsório de acesso a clínicas que reduzem o proletário à condição de simples otário. Nem mesmo a prole lhe será permitido ter. Sua própria humanidade é negada.
No futuro, seguindo as leis do mercado, quem revelar fraqueza ou inapetência para perseguir com perfeição o caminho da riqueza será identificado por sensores e tragado por sorvedouros produzidos pela mais avançada tecnologia.

Dom Mauro Morelli, 67, é bispo católico de Duque de Caxias (RJ) e membro do Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional.


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