São Paulo, domingo, 14 de março de 2004

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CLÓVIS ROSSI

A Espanha irrita

MADRI - Às vezes, a prosperidade da Espanha me parece um insulto. Ou uma espécie de ajuda-memória sobre o fracasso brasileiro.
Trata-se de um dos raros países ricos (ou quase) com os quais há possibilidade de comparações. Passamos ambos por ditaduras de longa duração (a deles durou quase 40 anos, ou o dobro da nossa). Somos ambos latinos, com todas as vantagens e desvantagens. As economias tinham tamanho parecido até que o jogo cambial jogou a nossa para baixo (claro que os espanhóis dividem seu bolo entre apenas 42 milhões, e nós somos 170 milhões).
Por que, restabelecida a democracia em ambos os países, eles deram um baita salto e nós ficamos rastejando? Não vou cansar o leitor com estatísticas, mas uma tem que ser mencionada: a renda da velha Espanha, a de 1960, ainda na ditadura, correspondia a 59,3% da renda média da Comunidade Européia.
No ano passado, já alcançava 85,8%. Ou seja, reduziu em 26,5 pontos percentuais a brecha com a média do conglomerado que, além de ser estupendamente rico, é o menos desigual do planeta.
E nós? Preciso falar dos 20 anos de estagnação ou avanços milimétricos? Tudo bem que conseguimos firmar a democracia, mas eles também. Tudo bem que dominamos a inflação (menos, claro, nas atas do Banco Central). Mas eles também (tiveram apenas 2,3% no ano passado).
Uma explicação fácil é a pilha de dinheiro que a Europa despejou na Espanha: o equivalente a 140 bilhões desde 1986. Dá uns R$ 490 bilhões, ou quase meio Brasil.
Não é empréstimo. É doação.
Até temo perguntar: se tivéssemos recebido a mesma pilha, teríamos dado a ela tão bom destino?
Aí, na manhã de quinta-feira, depois dos atentados, meu filho liga para saber se estávamos vivos. E ironiza: "Esse é o país civilizado que você tanto preza?".
Não tive reflexo para lembrá-lo de que mais gente morre no Brasil, na nossa guerra civil não declarada, do que nos trens espanhóis.



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