São Paulo, domingo, 14 de maio de 2000


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Mãe trabalhadora


Está em risco uma conquista histórica, embasada em necessidades que a natureza e a cultura impõem


SILVIA PIMENTEL e VALÉRIA PANDJIARJIAN

"A língua é minha pátria / E eu não tenho pátria / Tenho mátria / E quero frátria"
Caetano Veloso

Por ocasião do Dia das Mães, vale comemorar, mas também vale refletir sobre o impacto da globalização na condição socioeconômica da mulher, em especial da mãe trabalhadora.
É inegável a tendência à desregulamentação das relações de trabalho, ampliando o espaço das negociações diretas entre empregados e empregadores. É nesse movimento que se insere a proposta de revisão da Convenção 103 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), que trata da proteção social à maternidade, pauta da 88ª Conferência da OIT, em junho, em Genebra (Suíça).
A proposta de revisão da Convenção (que é de 1919, revista em 1952) foi apresentada na 87ª reunião da OIT, por um grupo de empregadores, com o intuito de flexibilizar os mecanismos nela previstos, adequando-a à nova realidade econômica e social dos países, para obter um maior número de ratificações (38 dos 174 Estados-membros a ratificam). Essas adequações poderiam representar avanços no desenvolvimento social e na promoção dos direitos humanos das trabalhadoras, não estivessem calcadas na lógica da globalização econômica, que privilegia o capital em detrimento da dignidade do ser humano nas relações de produção.
O projeto põe em risco significativas conquistas da mulher trabalhadora, e sua aprovação poderia produzir enfraquecimento e perda da efetividade das Convenções 100 (igualdade de remuneração) e 111 (discriminação: emprego e ocupação), consideradas pela Declaração dos Direitos e Princípios Fundamentais no Trabalho (1998) como duas entre as oito convenções básicas da OIT.
Segundo o texto atual da Convenção 103, toda mulher trabalhadora tem direito a licença-maternidade de, no mínimo, 12 semanas, sendo que, obrigatoriamente, seis devem ser tiradas no período pós-parto. A proposta de revisão pretende: a) eliminar a obrigatoriedade de que uma parte da licença seja tomada no período posterior ao parto; b) permitir a demissão da mulher durante a gravidez, o parto e a amamentação, desde que não seja pelo fato de estar grávida ou amamentando; e c) eliminar do texto da convenção, transferindo-os para o Projeto de Recomendação, dispositivos como o referente às interrupções da jornada de trabalho para amamentação sem necessidade de compensação, bem como vários outros sobre prestações médicas e em dinheiro.
Embora o projeto tenha aspectos positivos, como a obrigação de os países signatários adotarem medidas destinadas a garantir que a maternidade não constitua causa de discriminação no emprego, explicitando a proibição de teste de gravidez para admissão, a aprovação nos termos acima significaria um retrocesso na política de promoção da igualdade de oportunidade e da equidade de gênero no mundo do trabalho.
Está em risco uma conquista política histórica, embasada em necessidades que a natureza e a cultura impõem e que, mais que um benefício à mulher, representa um direito da criança.
Vale dizer, os "benefícios" da licença-maternidade, amamentação e estabilidade provisória no emprego, devem ser encarados menos como medidas protetivas e mais como direitos que, nos planos individual e social, devem ser garantidos à mãe trabalhadora e, acima de tudo, à criança. Estudos da Organização Mundial da Saúde são irretorquíveis: a amamentação salva a vida de bebês, em especial a dos que compõem o universo dos excluídos no Terceiro Mundo.
Tampouco configuram tais "benefícios" tratamento discriminatório entre homens e mulheres nem, como muitos argumentam, prejudicam a inserção destas no mercado, por "onerar o empregador e o Estado e comprometer a produtividade da empresa". Desestimulante mesmo à maternidade e ao trabalho das mulheres é essa revisão.
A existência de uma legislação internacional com garantias mínimas para a mulher-mãe é fundamental para fortalecer, nos países, a luta pela criação, modificação e/ou manutenção de uma normativa nacional adequada, que permita a mulheres trabalhadoras enfrentar em igualdade de condições com os homens o difícil equacionamento entre desfrute e responsabilidades da vida social, familiar e economicamente ativa.
Nesta virada de século e de milênio, quando deveríamos estar discutindo formas de incorporar mecanismos que estimulem o exercício da paternidade responsável, deparamos com a busca de redução das condições mínimas de uma maternidade digna e saudável.
A reunião da OIT coincide com o período em que a Organização das Nações Unidas celebrará a Conferência Pequim+5, em Nova York, que, entre tantos pontos, discutirá a polêmica dos direitos relacionados à sexualidade, saúde e reprodução, para a qual estão voltadas as atenções do movimento feminista de todo o mundo. A falta de uma articulação dos movimentos sociais em torno das propostas de revisão da Convenção 103 pode acarretar um maior enfraquecimento e esvaziamento do conteúdo dos direitos sexuais e reprodutivos.
Juntar esforços à Campanha Nacional das quatro centrais sindicais brasileiras em defesa da proteção social à maternidade pode ser uma forma de celebrar o Dia das Mães com dignidade e esperança de que o Brasil, que possui uma das legislações mais avançadas do mundo na matéria, não se submeta, mais uma vez, a interesses transnacionais contrários à sua mátria. É o que esperam os filhos e as filhas deste solo, mãe gentil.


Silvia Pimentel, 60, é professora da Faculdade de Direito da PUC-SP (Pontifícia Universidade Católica) e coordenadora nacional do Comitê Latino-Americano e do Caribe para a Defesa dos Direitos da Mulher (Cladem-Brasil).

Valéria Pandjiarjian, 31, advogada e pesquisadora, é membro do Cladem-Brasil e do Instituto para Promoção da Equidade (Ipê).




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