São Paulo, terça-feira, 14 de outubro de 2008

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TENDÊNCIAS/DEBATES

O alvará do príncipe

ROBERTO LUIS TROSTER


Eram tempos difíceis quando d. João 6º fundou o sistema bancário brasileiro e o primeiro Banco Central do Brasil

EM 12 de outubro de 1808, no documento se lia (no português da época): "Eu, o príncipe regente, faço saber aos que este meu alvará virem que, atendendo ao bem comum dos meus vassalos... sou servido ordenar que nesta capital se estabeleça um banco público que... promova a indústria nacional pelo giro e combinação dos capitais isolados e facilite juntamente os meios e os recursos".
Eram tempos difíceis, o mundo estava passando por uma crise financeira originada pelas guerras napoleônicas. Não havia um lastro monetário definido, as oscilações nos preços eram altas, as corridas a bancos, freqüentes, e o epicentro financeiro da época, Londres, estava saindo da crise do bloqueio e às vésperas da crise de Londres de 1813.
Eram tempos difíceis quando d. João 6º fundou o sistema bancário brasileiro e o primeiro Banco Central do Brasil. As incertezas eram grandes, mas, como colocou na exposição de motivos, uma intermediação financeira estável e eficiente era uma condição necessária para o Brasil. A decisão do príncipe se provou certa, e os desafios foram superados.
Passados dois séculos, há motivos para celebrar e, como então, há também barreiras a superar. Atualmente, a indústria bancária brasileira é sofisticada e competitiva.
O sistema de pagamentos é seguro, acessível e cobre todo o território nacional. O grau de bancarização é elevado e, mesmo com todas as crises que o país atravessou, a poupança das famílias e empresas foi assegurada, e a moeda nacional foi preservada.
O fato de que bancos brasileiros atuam com bom desempenho em outros países da América Latina e na Europa, concorrendo com bancos internacionais, ilustra sua qualidade. O sistema bancário tem cumprido um papel importante no desenvolvimento do país. Deve ser comemorado.
Também faz parte da realidade que, em alguns aspectos, a tarefa proposta pelo príncipe não está concluída; duas metas não foram alcançadas, ainda. A primeira meta é o custo do crédito -está entre os mais onerosos do mundo e, apesar da expansão nos últimos anos, as taxas cobradas não foram reduzidas e, em alguns segmentos, até aumentaram.
O segundo objetivo, que não foi explicitado pelo príncipe, é o de um sistema justo. Atualmente, o custo do crédito e dos serviços para os mais pobres é desproporcionalmente maior, dificultando sobremaneira sua inserção econômica.
Pouco ou nada está sendo feito para alcançar esses objetivos.
Há, entretanto, outro desafio mais urgente: a preservação da estrutura atual, que está em risco.
A turbulência internacional ocorre num momento em que o sistema bancário brasileiro já vinha experimentando um aperto de liquidez. Com a diminuição de recursos para emprestar, os bancos estavam, desde o começo do ano, encurtando os prazos e aumentando as taxas, evitando, dessa forma, uma falta de caixa.
O quadro se agravou perigosamente com a crise externa. Por um lado, empresas tomadoras de recursos no exterior se voltaram para o mercado financeiro nacional, aumentando a demanda de crédito; por outro, os bancos perderam uma fonte abundante para atender a procura. Há um aperto de liquidez que pode quebrar a atual dinâmica do crédito.
A crise internacional agrava o problema, reduzindo a capacidade de pagamento de todos, em razão de expectativas de crescimento menores.
Com isso, os critérios dos bancos se tornam mais rígidos ainda. Antecipando mais dificuldades, cria-se um círculo vicioso, de mais aperto, com isso, mais risco para emprestar, logo, uma retração maior ainda do crédito.
O perigo é que, dessa forma, empresas solventes, sem o enxugamento da liquidez, se tornem inadimplentes por causa da situação.
Embora uma desaceleração dos financiamentos seja esperada, se ocorrer uma quebra, sua recuperação será demorada, com conseqüências econômicas e sociais graves. É imperativo impedir uma parada súbita do crédito para evitar o pior.
Ainda há tempo e há como.
Os desafios hoje, como foram para o príncipe, são urgentes e complexos. Não é a primeira e não será a última crise que o país tem que enfrentar.
Dois séculos de história dos bancos brasileiros provam que é possível superar obstáculos. Basta querer fazer acontecer.


ROBERTO LUIS TROSTER , 57, é doutor em economia pela USP e sócio da Integral Trust. Foi economista-chefe da Febraban (Federação Brasileira de Bancos), da ABBC e do Banco Itamarati.

robertotroster@uol.com.br

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