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O imposto (cuidadosamente) esquecido
ALMIR TEUBL SANCHES
Rejeitada a prorrogação da CPMF, torna-se premente a retomada do debate acerca da instituição do Imposto sobre Grandes Fortunas
DE TUDO o que foi dito no longo
debate sobre a prorrogação da
CPMF (Contribuição Provisória sobre Movimentação Financeira),
o que mais causa espanto é justamente aquilo que foi esquecido. Quando
de sua criação, na reforma tributária
de 1993, a CPMF (então ainda IPMF)
foi uma manobra da União para que
pudesse resolver seu problema de caixa sem precisar instituir o Imposto
sobre Grandes Fortunas (IGF).
Ou seja, por meio de uma reforma,
criou-se um tributo até então inexistente para deixar cuidadosamente esquecido aquele que era previsto pela
Constituição (artigo 153, VII), mas
que mexia com grandes interesses.
Após quase 20 anos da promulgação da nossa Carta Magna, o IGF permanece, sintomaticamente, o único
imposto de previsão constitucional
não instituído.
Timidamente, apresentou-se, no
início da década de 1990, uma meia
dúzia de projetos de lei para cuidar
dessa questão. As propostas que tratavam do IGF, claro, tiveram o mesmo destino da grande maioria das que
atentam contra os interesses dos poderosos: a gaveta do Congresso Nacional, essa gaveta em que se guarda
boa parte da história do que poderia
ter sido nosso país.
Para ter uma idéia dos gigantescos
interesses em jogo, numa síntese dos
projetos apresentados, o IGF incidiria anualmente sobre o patrimônio líquido de pessoas físicas que ultrapassasse algo em torno de R$ 6 milhões,
em valores atualizados. As alíquotas
obedeceriam a uma tabela progressiva, variando entre 0,3% e 1%, sendo
tanto maior quanto maior fosse a fortuna. Seria uma espécie de complementação do Imposto de Renda.
Assim, o IGF é o tributo que, por excelência, atende ao princípio basilar
da capacidade contributiva, espinha
dorsal da justiça tributária, ao dizer
que cada pessoa deve contribuir na
medida de sua aptidão econômica.
Curiosamente, entre os argumentos que derrubaram a CPMF, um dos
mais eloqüentes foi justamente o de
que ela desrespeitaria o princípio da
capacidade contributiva. Que um
princípio tão importante quanto esse
seja usado quando interessa, mas esquecido quando convém, é algo que
seria cômico se não fosse trágico.
Infelizmente, é preciso dizer que
não passa de econômica a aptidão dos
que têm grandes fortunas a contribuir, sendo ela barrada pela "inaptidão política" -o que fica patente pelo
forte lobby no esquecimento do IGF,
sob a roupagem de argumentos técnicos que não se sustentam. Entre estes, o que mais espanta é a alegação de
que, uma vez instituído, o IGF seria
vítima de fraudes.
Com efeito, a fraude às obrigações
tributárias é uma realidade brasileira,
mas não se pode conceber que o legislador deixe de exercer sua função,
acovardando-se por temer não ser
respeitado. Ora, as leis devem coibir
as fraudes, e não o contrário. Do inverso, agiríamos como o covarde que,
temendo perceber que está cego, jamais voltará a abrir seus olhos.
Inclusive, o IGF poderia, ele mesmo, transformar-se em um importante instrumento de fiscalização de inúmeros outros tributos, ao possibilitar
o cruzamento de dados com outras
declarações tributárias -função,
aliás, que a CPMF exercia com louvor.
Um outro argumento, de que o IGF
poderia reduzir a poupança interna e
desestimular a interiorização de capitais externos, pode ser abandonado
com facilidade: basta ver que a Suíça,
sabidamente um dos países que mais
recebem capitais externos do mundo,
adotou imposto semelhante.
Um último argumento contrário ao
IGF é a estimativa de que a arrecadação por ele gerada seria de pequena
expressividade. Os que argumentam
nesse sentido se baseiam na experiência internacional, mas se esquecem de que os países examinados têm
em comum justamente aquilo em que
se diferenciam do Brasil: são países
desenvolvidos, com excelentes níveis
de distribuição de renda.
Sem grandes desnivelamentos sociais, é natural que a arrecadação de
um imposto sobre grandes fortunas
não seja muito expressiva quando
comparada à de outros tributos. Não é
viável, no entanto, um país marcado
pela injustiça social, em que a concentração de renda é uma das dez maiores do mundo, se dar ao luxo de esnobar o IGF ao fundamento de que a arrecadação seria baixa.
Com a rejeição da prorrogação da
CPMF e os decorrentes problemas de
caixa que a União fatalmente voltará a
enfrentar, torna-se premente a retomada do debate sobre a instituição
desse imposto.
Do contrário, se continuarmos encarando o IGF como um mero deslize
do constituinte, melhor seria que o
esquecêssemos de uma vez e, com ele,
jogássemos fora o princípio da capacidade contributiva, que, no Brasil, infelizmente, se presta a pouco mais do
que sustentar hipocrisias.
Como alguém consegue dormir
com todo esse silêncio?
ALMIR TEUBL SANCHES, 28, mestrando em filosofia do
direito pela USP, é procurador da Fazenda Nacional.
Os artigos publicados com assinatura não traduzem a opinião do jornal. Sua publicação obedece ao propósito de estimular o debate dos problemas brasileiros e mundiais e de refletir as diversas tendências do pensamento contemporâneo. debates@uol.com.br
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