São Paulo, quarta-feira, 15 de abril de 2009

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TENDÊNCIAS/DEBATES

A morte do Espanhol

JOSÉ CARLOS DIAS


Morreu talvez o mais brilhante advogado de júri que conheci nestes 50 anos de advocacia, uma figura admirável


MORREU WALDIR Troncoso Peres, talvez o mais brilhante advogado de júri que conheci nestes 50 anos de advocacia -pela eloquência, pelo brilho de sua oratória e pelo conteúdo de seu discurso. Era uma figura admirável.
Emociono-me ao lembrar-me dele, do seu tão grande talento, porque o Waldir era incomparável, uma torrente maravilhosa de palavras e frases, sempre envolvendo e apaixonando o ouvinte. Por diversas vezes repeti que, se um dia, por "madrastaria do destino", adotando a sua linguagem, viesse a matar alguém, teria como minha maior aspiração que o Waldir se encarregasse de me defender, ainda que usando só o tempo da tréplica.
Mas se o Espanhol -como carinhosamente era tratado pelos que conviviam no ambiente do fórum criminal- era o gigante como advogado que soube ser, isso não se devia somente ao grande talento como orador capaz de empolgar e convencer os jurados, ainda que não tivesse conhecido a prova dos autos em todas as suas minúcias. E a lenda efetivamente era essa. Mas a verdade é que era insuperável em sua capacidade de absorver o sumo do processo, de condensar o essencial e arrebatar o ouvinte com argumentos e análises que enveredavam pelo campo da psicologia, da filosofia, da literatura, do conhecimento da alma humana. Isso tudo o Waldir fazia como ninguém.
E que aprumo ético demonstrava o Waldir com os advogados, estimulando os mais jovens, aconselhando-os sem que as lições tivessem o travo do mestre ensinando, mas sempre do colega opinando, com humildade e simplicidade. Não só com os advogados era assim, mas com todos -a devoção aos clientes, a forma de lidar com os humildes, a sua simpatia, o seu senso de humor.
Não posso me esquecer de uma importante causa em que nos defrontamos, eu como assistente de acusação do cantor Lindomar Castilho, que matara Eliana de Gramond. O Waldir, em todas as audiências, voltava à carga com uma frase dita com a entonação típica dele: "Eu vou contar uma coisa pra você: o que me angustia, baixinho, é essa sua crueldade em acusar.
Você deveria ser tolerante com o amor, que, ao lado do ciúme, do medo e do ódio, é um dos quatro gigantes da alma", parafraseando Mira y López, e se punha a sorrir com aquela sua capacidade de tornar leve o que seria pesado e fastidioso.
Afinal, não pude ter a alegria de enfrentá-lo no júri, que iria ficar a cargo de Márcio Thomaz Bastos, a quem substabeleci a procuração quando fui convidado por Franco Montoro para assumir a Secretaria da Justiça do Estado de São Paulo.
Waldir foi o grande defensor dos pobres, como procurador da assistência judiciária que antecedeu a Defensoria Pública de hoje. Lembro-me bem de que oferecemos um banquete ao Waldir quando se estimou que ele tinha completado mil júris, a maior parte em favor de gente humilde.
A morte de Waldir aconteceu depois de longo período em que sofreu a impossibilidade de mostrar o brilho de sua palavra.
Com a partida do Waldir, fica-nos a bela lembrança de tempos bons em que nos reuníamos no velho fórum criminal, na esquina de dois corredores que apelidamos de "Praça da Alegria", nos finais de tarde, presentes grandes vultos da advocacia, da magistratura e do Ministério Público -tantos outros que envelheceram na lida do direito, numa camaradagem engraçada e respeitosa que alimentava, naquela época, o cotidiano da Justiça criminal.

JOSÉ CARLOS DIAS, 69, advogado criminal, foi secretário da Justiça do Estado de São Paulo (governo Montoro) e Ministro da Justiça (governo FHC).


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