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RUY CASTRO
Delírios avícolas
RIO DE JANEIRO - Foi em 1979,
numa das minhas primeiras vezes
em São Paulo. Acordei no apartamento do hotel chique -a atmosfera ainda recendia aos reis, rainhas e
estrelas de Hollywood que já tinham se hospedado nele- e julguei
ouvir ruídos avícolas nas proximidades. Estava sonhando, lógico. Virei para o canto e esperei que os ruídos morressem entre as brumas.
Mas eles continuaram. Pareciam
grasnidos de patos, misturados a
pios e cacarejos. Não era sonho, era
à vera. Como um zumbi, entre o
alerta e a morte, fui à janela. E, vários andares abaixo, vi a cena impossível: patos, gansos, marrecos e, talvez, pintos, passeando em fila pela calçada, alguns ameaçando atravessar a rua na faixa listrada.
Naquele momento, tive medo. Eu
bebia demais, e amigos já haviam
me advertido para a inevitabilidade
das alucinações. Era isso. Patos e
gansos à solta na esquina da avenida São Luís, só nos mais absurdos
delírios. Fechei correndo a cortina
e meti-me no chuveiro, tentando
espantar o fantasma.
Meia hora depois, já razoavelmente refeito, desci à rua. E, ao espiar com cuidado o cenário da alucinação, no outro lado da pista, lá
estavam as aves circulando alegremente pela calçada. Elas eram reais.
E havia uma explicação: pertenciam a uma loja de animais que funcionava defronte ao hotel. Graças,
eu ainda não chegara àquele ponto.
Trinta anos depois, na semana
passada, voltei pela primeira vez ao
hotel. Pedi um apartamento que
desse para a mesma esquina e, rindo, contei a história ao homem do
balcão. Ele também riu e disse que a
loja de animais dera lugar, há apenas um ano, a uma loja de flores.
Bem, subi e dormi.
De manhã, ao acordar -não sei se
era sonho ou, quem sabe, uma
recorrência nostálgica-, podia jurar que estava ouvindo pios e
grasnidos.
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