São Paulo, segunda-feira, 15 de julho de 2002

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

As feras continuam soltas

RODOLFO KONDER


A construção de uma democracia estável, sólida e duradoura passa pela humanização dos corações e das mentes


Depois de muitos anos de exercício arbitrário do poder, as ditaduras erguidas como vasos de guerra nos estaleiros da América Latina, nas décadas de 60 e 70, deram sinais de fadiga e começaram a afundar. Após um longo período de trevas, atrofiou-se ali a capacidade de reflexão crítica, de questionamento, de dúvida, e o madeirame dos barcos apodreceu, seus metais enferrujaram e se tornaram lassos os músculos de todo o aparelho público. O modelo autoritário finalmente naufragou junto com a Guerra Fria.
Mas os escombros das ditaduras afundadas -o chamado "entulho autoritário"- ainda poluem nossas praias. As marés os empurram até as areias movediças dos nossos hábitos, de nossas atitudes. Descobrem e expõem também inúmeros vícios de raciocínio e velhos preconceitos, com os quais defrontamos todos os dias.
Reconquistada a democracia, ficam os vestígios, os destroços, as heranças do autoritarismo. A deseducação, por exemplo. Durante anos, fomos todos deseducados pelas simplificações, pelo maniqueísmo daqueles tempos sombrios. Manifestações? Efeitos? Quando consideramos como "inimigo" alguém que simplesmente discorda de nós. Quando tentamos suprimir os antagonismos e as controvérsias pela intimidação ou pela coerção. Quando concluímos que o melhor meio de calar os dissidentes é a imposição de uma disciplina rigorosa ou a aplicação de uma punição implacável. Você quer mais?
Vivemos a hora do reencontro, da redescoberta. A mudança nos traz novos desafios, em especial no campo da educação. A construção de uma democracia estável, sólida e duradoura passa pela humanização dos corações e das mentes, pela substituição de hábitos e posturas, pelo aprimoramento de instituições e práticas. Em toda a América Latina, buscamos novos caminhos, queremos crescer com autonomia, precisamos de liberdade para nos desenvolvermos
Nesse quadro, devemos repensar os problemas da educação, a partir de uma nova ótica -a ótica da mudança. As pessoas devem ser educadas para o convívio democrático. A solidariedade é indispensável. Mesmos nossas nações só encontrarão seu caminho, sua identidade, sua plena soberania no compromisso com alguns princípios e valores universais, como a defesa da paz, do pluralismo, dos direitos humanos, do equilíbrio e da justiça social, da preservação de um meio ambiente saudável.
Mas esta nova postura começa dentro de cada um de nós, no interior de cada um e de cada comunidade. A busca da verdade individual e nacional depende, para seu sucesso, da criação de um sistema educacional à altura dos novos desafios. Depende de uma universidade capaz de funcionar permanentemente como instrumento de avaliação e reavaliação crítica do esforço nacional.
A educação, no Brasil e na América Latina de hoje, deve ser uma escola sem fronteiras, capaz de eliminar os preconceitos, a insensibilidade e o autoritarismo, não somente das leis, mas também da prática cotidiana, na relação entre homens e mulheres, adultos e crianças, jovens e velhos, negros e brancos. Só assim domaremos de fato as feras do autoritarismo. E eliminaremos de vez o "entulho autoritário".
Domadas as feras e despoluídas as praias, certamente redescobriremos o Mercosul ou integraremos a Alca, sempre preocupados em unir, somar, buscar uma necessária unidade, que somente a cultura poderá assegurar.
É nos cenários da cultura que preservaremos nossa diversidade. Aos limites físicos do Mercosul ou da Alca deverá corresponder um mercado comum de bens e serviços culturais que lhes dará alma.


Rodolfo Konder, 64, jornalista e escritor, é diretor Cultural da UniFMU. Foi secretário da Cultura do município de São Paulo (administração Celso Pitta).


Texto Anterior: TENDÊNCIAS/DEBATES
Paulo Jobim: O emprego no Brasil

Próximo Texto: Painel do leitor
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.