São Paulo, quinta-feira, 15 de setembro de 2005

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CARLOS HEITOR CONY

Considerações sobre o trigo

RIO DE JANEIRO - A pátria, segundo Rui Barbosa, é a família amplificada. Aceitando a definição, a família seria o indivíduo amplificado. Não mais se cita Rui Barbosa como antigamente, mas, vez por outra, ele é lembrado, sobretudo com aquela famosa dissertação sobre a decadência de usos e costumes: de tanto ver desprezadas a moral, a justiça, a dignidade etc. etc., o homem deixa de crer na moral, na justiça, na dignidade etc. etc.
Fazendo uma elipse mais ou menos lógica, deve-se concluir que a pátria é a amplificação do indivíduo. Uma frase badalada durante o regime totalitário (1964-1985) garantia que o Brasil era feito por nós, ficando meio obscuro se esse "nós" se referia ao equivalente "nosotros" do espanhol ou se eram nós -uma sucessão de atropelos, dificuldades, becos sem saída.
Daí que nunca entendi direito aquela distinção dos Evangelhos segundo a qual deve-se separar o joio do trigo, ou vice-versa. Para falar a verdade, sei mais ou menos o que é trigo -dele me alimento e com algum esforço sou capaz de diferenciar um trigal de uma floresta de eucaliptos. Mas, que me lembre, nunca vi um joio. Tenho a impressão de que deve ser alguma erva daninha ou inútil. Boa coisa não deve ser para ter merecido a condenação evangélica e o repúdio generalizado que anda por aí.
Minhas referências agrárias só se tornam maiores diante de minhas referências políticas, que são realmente escassas e lerdas. Sempre foi difícil, para mim, estabelecer o que é joio e o que é trigo. Tirante a supressão da liberdade de pensamento, que ocorre nos regimes totalitários e da qual não pretendo abrir mão, o resto deixo para os outros, que devem saber o que é joio e o que é trigo.
A cara do Severino, já o disse aqui, é a cara do Brasil. O Brasil de verdade, feito por nós ou por "nós". Se somos joio ou trigo, fica a critério de nossa pretensão. Ou da má informação.


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