São Paulo, sexta-feira, 15 de novembro de 2002

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TENDÊNCIAS/DEBATES

E agora, que teoria?

EMIR SADER

Estamos saindo de uma década miserável para a política e para a vida intelectual. Em vez da elevação do debate teórico, a eleição de um presidente de origem intelectual, ao adotar uma teoria já elaborada -o Consenso de Washington-, implicou a renúncia a teorizar o que se fazia, porque tudo já estava escrito. A desqualificação dos adversários e da própria possibilidade de divergência e de debate correspondia à impossibilidade de escrever o que se fez -no fundo, resumido ao filtro financeiro do ajuste fiscal, que dizia o que podia e não podia ser feito, o que era bom e mau para o país.
O fracasso e a derrota desse governo e dessa forma de encarar a prática política e o debate teórico significam uma nova possibilidade de valorizar a vida intelectual. Não só uma possibilidade, mas uma necessidade urgente, já que, pela primeira vez nos últimos grandes projetos históricos do Brasil, entramos num novo período político sem uma elaboração teórica à altura dos desafios postos. O governo de João Goulart podia se fundamentar no Plano de Metas, de Celso Furtado. A ditadura militar se inspirava na Doutrina de Segurança Nacional. A transição democrática apoiava-se na teoria do autoritarismo. Quando o Brasil inova politicamente e se lança ao primeiro governo pós-neoliberal, surgem desafios enormes para a recuperação do atraso na análise e nas proposições teóricas entre nós.
Entre suas características específicas, o Brasil dispõem de uma extensa gama de intelectuais que têm revelado uma extraordinária capacidade de produção teórica. No entanto, desqualificada pelo governo e pouco mobilizada pela oposição, essa intelectualidade, em sua grande maioria, viveu o período negro de que saímos refluída na universidade, sem se aventurar aos grandes desafios teóricos contemporâneos.
Justamente quando se deram as maiores transformações globais na sociedade brasileira -e no mundo em geral-, grassaram as teses de renúncia aos que passaram a ser chamados de "grandes relatos", que acabaram deixando lugar ao reinado do economicismo. É hora de recuperar esse atraso.
Quais são os principais desafios teóricos atuais, quando os brasileiros votaram majoritariamente por um novo governo, antineoliberal? Em primeiro lugar, avaliar devidamente as transformações que o neoliberalismo, com suas doutrinas e com as transformações reais que operou, introduziu na sociedade brasileira. Em outras palavras, nos reapropriarmos do que é hoje o capitalismo no Brasil, com seus processos de acumulação de capital, de reprodução social, de representação política, de expressão cultural, de dependência externa, para alimentar nossa luta por um outro Brasil possível.


Necessitamos de uma teoria da saída do neoliberalismo e do tipo de sociedade que o substituirá


Sem isso, não seremos contemporâneos do nosso presente, não estamos pisando com graus mínimos de certeza no chão da sociedade brasileira. Disto depende nossa capacidade de avaliação das reais relações de forças existentes, da definição de adversários e aliados, dos obstáculos e dos elementos favoráveis com que contar, das forças a derrotar e daquelas a conquistar, daquelas a que é preciso dar apoio para que sejam sujeitos sociais, políticos e culturais.
Promover e participar ativamente de um grande mutirão intelectual e cultural, de debates, propostas, seminários, de produção teórica e de discussão ampla, que recupere o prestígio e o costume da leitura, do debate, da produção teórica, fortalecendo a idéia de que sem compreensão teórica não há transformação consciente da realidade, de que a realidade cobra muito caro o preço dos erros teóricos torna-se indispensável. Para tanto será necessário criar e ampliar órgãos e espaços de debate e de divulgação a fim de materializar esse mutirão e contribuir para a construção de uma hegemonia alternativa no Brasil.
Nesse processo, será preciso fortalecer e disseminar a cultura e a formação histórica e política das novas gerações, tanto dos seus setores que estão nas escolas, quanto daqueles -majoritários- que estão excluídos, através de cursos, seminários, de todas as formas de capacitar a maior quantidade de pessoas para que a nova etapa histórica em que o Brasil ingressa represente não apenas um passo na democratização econômica, política e social do país, mas também a sua democratização intelectual e cultural.
Precisamos de uma teoria da saída do neoliberalismo e do tipo de sociedade que o substituirá. Sabemos que a mercantilização -marca do capitalismo na sua fase atual- tem que ser combatida frontalmente e, com ela, a exploração, a dominação política, a discriminação e a alienação. Mas temos de propor as formas que assumirá esse Brasil pós-neoliberal. Para tanto, os intelectuais -no sentido amplo, gramsciano da palavra, de todos os que trabalham com as palavras e com as idéias, que se propõem a construir um outro mundo possível- têm um papel essencial, indispensável.
As condições políticas estão dadas: através de uma campanha eleitoral memorável, em que desembocou a acumulação de forças das décadas anteriores, derrotamos o neoliberalismo. Trata-se, agora, de consolidar esses avanços, contribuindo para dar-lhes consistência teórica e massificando a participação intelectual, cultural, social e política do enorme caudal de gente que votou pela esperança e pela mudança.


Emir Sader, 59, é professor de sociologia da USP e da Uerj e autor de "Século 20: uma Biografia Não-Autorizada" (Perseu Abramo), entre outras obras.


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