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RUY CASTRO
Chato ser gostoso
RIO DE JANEIRO - A crase não
foi feita para humilhar ninguém,
como diz o Ferreira Gullar. Mas a
frase, sim. Há frases que, mesmo
com a intenção de elogiar, diminuem e humilham a pessoa a que se
referem.
É assim, por exemplo, quando
um crítico se refere a um romance,
biografia ou peça como "irrepreensível". Equivale a um mestre-escola
que, em posição de repreender um
ginasiano por colar na prova ou cochilar durante a aula, conclui que
não há o que repreender, donde o
aluno é "irrepreensível". Com isso,
o tal crítico, com ou sem credenciais, coloca-se acima do autor e da
obra a criticar, e, por sorte, lhe dispensa sua generosa indulgência.
É assim também quando, tentando homenagear um colega mais velho, o sujeito diz: "Em 30 anos de
convivência pessoal e profissional,
não me lembro de um deslize no
comportamento do Fulano". Como
se ele próprio fosse tão à prova de
deslizes que isso lhe permitisse distribuir juízos sobre o comportamento alheio, e como se o fato de
"não se lembrar de nenhum deslize" bastasse para ele sair conferindo atestados de retidão.
E é igualmente assim quando, referindo-se a alguém mais importante na hierarquia, o sujeito diz
que essa pessoa "é inteligente bastante" para fazer ou deixar de fazer
tal coisa. Com isso também está se
colocando acima dela ou, no mínimo, medindo a inteligência da pessoa pela sua -é inteligente porque
vai tomar uma decisão com a qual o
sujeito concorda.
Na última Copa, o jogador Cafu
disse que o treinador Parreira era
"inteligente bastante" para não o
deixar fora do time. Deu no que deu.
E, outro dia, o presidente Lula fez o
mesmo com o presidente Obama.
Era alguma medida que Lula achava que Obama deveria tomar -e, se
tomasse, estaria apenas sendo tão
"inteligente" quanto ele. Chato ser
gostoso.
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