São Paulo, segunda-feira, 15 de dezembro de 2008

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RUY CASTRO

Chato ser gostoso

RIO DE JANEIRO - A crase não foi feita para humilhar ninguém, como diz o Ferreira Gullar. Mas a frase, sim. Há frases que, mesmo com a intenção de elogiar, diminuem e humilham a pessoa a que se referem.
É assim, por exemplo, quando um crítico se refere a um romance, biografia ou peça como "irrepreensível". Equivale a um mestre-escola que, em posição de repreender um ginasiano por colar na prova ou cochilar durante a aula, conclui que não há o que repreender, donde o aluno é "irrepreensível". Com isso, o tal crítico, com ou sem credenciais, coloca-se acima do autor e da obra a criticar, e, por sorte, lhe dispensa sua generosa indulgência.
É assim também quando, tentando homenagear um colega mais velho, o sujeito diz: "Em 30 anos de convivência pessoal e profissional, não me lembro de um deslize no comportamento do Fulano". Como se ele próprio fosse tão à prova de deslizes que isso lhe permitisse distribuir juízos sobre o comportamento alheio, e como se o fato de "não se lembrar de nenhum deslize" bastasse para ele sair conferindo atestados de retidão.
E é igualmente assim quando, referindo-se a alguém mais importante na hierarquia, o sujeito diz que essa pessoa "é inteligente bastante" para fazer ou deixar de fazer tal coisa. Com isso também está se colocando acima dela ou, no mínimo, medindo a inteligência da pessoa pela sua -é inteligente porque vai tomar uma decisão com a qual o sujeito concorda.
Na última Copa, o jogador Cafu disse que o treinador Parreira era "inteligente bastante" para não o deixar fora do time. Deu no que deu. E, outro dia, o presidente Lula fez o mesmo com o presidente Obama. Era alguma medida que Lula achava que Obama deveria tomar -e, se tomasse, estaria apenas sendo tão "inteligente" quanto ele. Chato ser gostoso.


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