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O negócio da cultura
SÉRGIO DE CARVALHO e MARCO ANTONIO RODRIGUES
A idéia da Lei Rouanet parece boa, mas contém um movimento nefasto: verbas públicas passam a ser regidas pela vontade privada
O DEBATE sobre a extinção da
Lei Rouanet tem mobilizado
setores importantes da sociedade brasileira. Parte da classe artística, secretários de governo e jornalistas têm assumido o ponto de vista "reformar, sim, acabar, nunca!".
De fato, a Lei Rouanet tem se mostrado uma força miraculosa em seus
17 anos de vida. Basta dizer que mudou a paisagem da avenida Paulista,
em São Paulo, ao fazer surgir uma dezena de centros culturais. Curiosamente, instituições com nomes de
bancos, que elogiam o espírito abnegado da instituição financeira.
Seu nascimento está ligado à caneta
do presidente Collor de Mello, em
1991. Tinha, então, um nobre objetivo
pré-iluminista: incentivar o mecenato. Só que a aristocracia do passado
contratava diversão com recursos do
próprio bolso. Já a Lei Rouanet está
mais afinada com a cartilha liberal-conservadora de sua época: "O Estado
deve intervir o mínimo, a sociedade
deve se autogerir, mas, para isso, é
preciso uma ajudazinha".
Todo o poder miraculoso da lei tem
a ver com seu mecanismo simples: ela
autoriza que empresas direcionem
valores que seriam pagos como impostos para a produção cultural.
A idéia parece boa, mas contém um
movimento nefasto: verbas públicas
passam a ser regidas pela vontade privada das corporações, aquelas com lucro suficiente para se valer da renúncia fiscal e investir na área.
Assim, os diretores de marketing
dos conglomerados adquirem mais
poder de interferir na paisagem cultural do que o próprio ministro da
Cultura. E exercem tal poder segundo
os critérios do marketing empresarial. O estímulo aos agentes privados
resulta em privatismo.
Diante da grandeza do fundo social
mobilizado desde 1991 (da ordem de
R$ 1 bilhão só no ano de 2007), é possível compreender a gritaria das últimas semanas.
Por trás da defesa da Lei Rouanet,
há maciços interesses. Não só os das
instituições patrocinadoras, que
aprenderam a produzir seus eventos
culturais, mas os da arte de índole comercial (feita para o agrado fácil), que
ganha duas vezes -na produção e na
circulação-, na medida em que os ingressos seguem caríssimos.
Os maiores lucros, contudo, ficam
com os intermediários. De um lado, as
empresas de comunicação, cujos
anúncios pagos constituem gigantesca fonte de renda, em média 30% dos
orçamentos. De outro, a casta dos
"captadores de recursos", gente que
embolsou de 10% a 20% do bilhão do
ano passado apenas por ter acesso ao
cafezinho das diretorias de empresas.
Como não há julgamento da relevância cultural na atribuição dos certificados que habilitam o patrocínio, a
lei miraculosa abriu as portas dos
nossos teatros às megaproduções internacionais, que ganham mais aqui
do que em seus países de origem.
O caso do Cirque du Soleil, com
seus R$ 9 milhões de dinheiro público
e ingressos a R$ 200, está longe de ser
exceção. Ao contrário, é a norma de
um sistema em que o Estado se exime
de julgar a qualidade em nome do
ideal liberal de tratar os agentes desiguais como iguais e "conter o aparelhamento político da cultura".
O pressuposto filosófico do debate
foi revelado pelo secretário da Cultura de São Paulo, João Sayad: "Antigamente, numa era religiosa, o natural
era a coisa criada por Deus. Hoje, o
natural é o que dá lucro".
Ao defender o subsídio contra o
mercado excludente, assume a impotência do Estado e endossa a idéia de
naturalidade (portanto, imutabilidade) do império do capital sobre qualquer coisa que já se chamou "vida".
Uma reforma da Lei Rouanet incapaz de impedir o controle privado de
recursos públicos não faz sentido.
O Estado pode estimular a generosidade humanista dos empresários
com renúncia fiscal, mas não pode
deixar de regular a distribuição do
fundo social com regras claras de concorrência pública. Não parece óbvio?
Então, por que não enfrentar o debate sobre valores culturais? Por que
contribuir para a universalização da
lógica mercantil? O "aparelhamento
político da cultura" pode ser questionado em público. O desejo unilateral
de um gerente de marketing, não.
Num passado recente, o governo
Lula sacrificou seus membros para
não enfrentar a tropa de elite da mídia
eletrônica. Estava em questão a exigência de "contrapartida social" no
patrocínio das estatais.
Sua disposição conciliatória pode,
de novo, impedir uma transformação
maior, rumo a uma cultura livre, pensada como direito de todos. Mas qualquer mudança exige, no mínimo, considerar a hipótese de que a realidade e
o mercado não são uma coisa só.
SÉRGIO DE CARVALHO, 41, é diretor da Companhia do
Latão e professor de dramaturgia da USP.
MARCO ANTONIO RODRIGUES, 52, é diretor e um dos
fundadores do Folias, companhia teatral.
Os artigos publicados com assinatura não traduzem a opinião do jornal. Sua publicação obedece ao propósito de estimular o debate dos problemas brasileiros e mundiais e de refletir as diversas tendências do pensamento contemporâneo. debates@uol.com.br
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