São Paulo, sexta-feira, 16 de junho de 2006

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TENDÊNCIAS/DEBATES

A instabilidade boliviana

CARLOS DE MEIRA MATTOS

O NOVO GOVERNO de Evo Morales, com um início desfavorável aos interesses brasileiros, veio repetir a histórica instabilidade de poder na Bolívia. A Bolívia nasceu historicamente fadada à instabilidade política. Em 1824, após vencer os espanhóis em Ayacucho, conquistando o Peru, Bolívar enviou o general Sucre ao Alto Peru (hoje Bolívia), a fim de expulsar o restante das forças espanholas que lá haviam se refugiado. O general Sucre, uma vez derrotados os espanhóis, foi envolvido pelos patriotas locais, que lhe propuseram criar ali uma nação independente de Lima. Sucre aceitou o anseio dos patriotas locais, que proclamaram a independência da região, dando ao novo país o nome de Bolívia, em homenagem ao libertador Simón Bolívar, e à sua capital o nome de Sucre.


A Bolívia nasceu com 2 milhões de km2, mas nos seus primeiros cem anos de existência perdeu cerca de metade de seu território


Documentos históricos registram que ao receber a comunicação de Sucre sobre a criação do novo Estado, o libertador em carta censurou o seu general, por ter concordado com a fundação de um Estado independente em região geopoliticamente dependente e que seria um foco permanente de instabilidade. A previsão de Bolívar realizou-se. Desde de sua independência, em 1826, a Bolívia vive um ambiente de constante instabilidade política e social. Nasceu com cerca de 2 milhões de km2. Durante os seus primeiros cem anos de existência, perdeu para seus vizinhos -Argentina, Chile, Paraguai, Peru e Brasil (Acre)- cerca de metade de seu território inicial. Perdeu o seu litoral no Pacífico em guerra contra o Chile (1884), tornando-se um país mediterrâneo. Outras porções de seu território foram subtraídas em guerras contra o Peru e Paraguai. Em disputas diplomáticas com Argentina e Brasil, viu diminuir ainda mais o seu patrimônio físico. A profética antevisão de Simón Bolívar, fundada na sua intuição geopolítica, provinha da avaliação de uma realidade geográfica potencial quando se trata de constituir uma unidade política coesa. O território do Alto Peru é formado pelas partes interiores, secundárias, de duas grandes bacias hidrográficas, Prata e Amazônica, e de um trecho intermediário do sistema andino. Todas essas três partes são dependentes geográficas e naturalmente submetidas à atração política do centrefugismo do eixo dos sistemas: a bacia do Prata corre para a sua foz no Atlântico Sul. A bacia Amazônica puxa para sua foz do Atlântico Norte e a porção andina do país, a menos ecumenizada, não pode subtrair-se da vinculação com os segmentos norte e sul do sistema andino. A esses fatores de uma geografia dispersiva veio agravar a perda de seu litoral no Pacífico na guerra contra o Chile (1879-1884), que o tornou um país mediterrâneo. O fator geográfico desfavorável poderia ter sido politicamente compensado pelas riquezas minerais -prata, ouro e estanho- mas as duas primeiras, ao se dar a independência, já estavam no limite do esgotamento, exploradas intensivamente pelo colonizador espanhol. O estanho, no começo do século 20, passou a ser explorado pelos magnatas da chamada "rosca" -Simón Patinõ, Carlos Aramayo e Mauricio Hoschild- oligarquia capitalista que explorou durante mais de 30 anos a economia e o sistema político do país, mantendo excluída de participação e na pobreza a maioria indígena e de sangue indígena da população (mais de 80%). Durante a guerra do Chaco contra o Paraguai (1932-1935), a necessidade da mobilização e igualização dos combatentes propiciou a consciência entre descendentes de índios e índios das condições de exclusão em que viviam. Um grupo de oficiais mestiços ("cholos") criou um "loja" (Razón de Pátria), que terminada a guerra passou a reivindicar o poder político. Num primeiro tempo, derrotaram os magnatas da "rosca", levando ao governo o mestiço, veterano da guerra, Vilarroel. A reação dos magnatas, em pouco tempo, conseguiu uma revolta que assassinou Vilarroel e o expôs enforcado em praça pública. Com isso, a semente da revolução dos "cholos" prosperou e, em 1952 , nova revolta leva à presidência Paz Estensoro e à vice Siles Zuazo. Ambos mestiços e veteranos da guerra do Chaco. A Revolução de 1952 tomou definitivamente o poder da oligarquia do estanho. Criou, para defender o governo, as brigadas armadas de trabalhadores mineiros e camponeses. Expulsou do país os lideres da "rosca" e seus partidários. A recente eleição de Evo Morales representa a evolução do movimento de 1952. Na primeira, assumiram os "cholos", nesta, os índios. A primeira manteve relações normais com o Brasil. Esta, começa ferindo nossos interesses econômicos no país, oriundos de uma política de integração legítima, aprovada com entusiasmo pelos anteriores governos bolivianos.
CARLOS DE MEIRA MATTOS é general reformado do Exército, doutor em Ciência Política, veterano da 2ª Guerra Mundial e conselheiro da Escola Superior de Guerra.


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