São Paulo, terça-feira, 16 de agosto de 2005

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TENDÊNCIAS/DEBATES

Revisitando a "CPI dos Anões"

JARBAS PASSARINHO

Karl Jasper escreveu: "Aquele que deseja ser verdadeiro corre o risco de se enganar". Enganou-se recentemente o ilustre ministro da Justiça a propósito do clima de generalização de corrupção que cerca o governo de que participa, se se considera como parte do governo a "classe dirigente", no conceito que lhe empresta Raymond Aron, ou seja, os dirigentes do PT que, não exercendo função pertinente ao Executivo, nele influíram até serem enxotados.


Foi dito que a "CPI dos Anões" teria feito uma farsa em vez de cumprir sua penosa missão. Repilo essa agressão à verdade


As denúncias do deputado Roberto Jefferson, proferidas sem provas que as baseassem, transformaram o que era só verossímil em verdades irrefutáveis, uma vez revelados documentos que incriminam os recebedores de saques vultosos feitos pelo magnânimo Marcos Valério, mais lobista que publicista, em conluio com o tesoureiro do PT.
O titular da pasta da Justiça dizia-se contrário ao "acordão" -de fato cogitado-, um imoral arranjo entre os corruptos, cevados no dinheiro sujo, em que se perdoariam mutuamente. Falto de melhor argumento e supondo falar a verdade, negou a versão comprometedora e deu-se ao luxo de dizer que não se poderia cometer o mesmo erro que atribuiu à CPI do Orçamento, vulgo "CPI dos Anões": a de combinar quem deveria ser cassado e quem não deveria.
Afirmou, peremptório: "Escalar seria repetir 1993". Creio que Sua Excelência, ocupado em patrocinar criminosos, no cumprimento de sua nobre profissão de penalista, não acompanhou o trabalho da CPI que, sobre ter sido facciosa, teria praticado uma farsa em vez de cumprir sua penosa missão da indicar para cassação os parlamentares envolvidos no desvio dos dinheiros públicos e absolver de acusações indevidas os que culpa não tinham. Repilo a agressão à verdade, concordando com tudo que, em carta publicada neste diário, o deputado Roberto Magalhães expressou, indignado com a injustiça cometida paradoxalmente pelo ministro da Justiça.
Fui presidente da CPI sem ter cabido ao meu partido a presidência. O PMDB, majoritário, deveria presidi-la, mas o saudoso Humberto Lucena, presidente do Senado e do PMDB, me telefonou e disse que o seu partido não se sentia à vontade para presidir, porque peemedebistas de relevo seriam investigados.
Fez-me, então, um apelo para aceitar a presidência, certo de que todos tinham certeza de que eu seria absolutamente imparcial. Pensei em indicar para relator, inicialmente, o deputado (a comissão era mista) Hélio Bicudo. Mas o deputado Luiz Eduardo, líder do PFL, pleiteou para seu partido, a segunda maior bancada, a relatoria. Aceitei quando me foi apresentado o nome do deputado Roberto Magalhães, ex-governador de Pernambuco e de cuja integridade moral ninguém jamais ousou duvidar.
Não fizemos prisões. Estendemos a investigação a governadores de Estados, o que poderia ser objetado, pois se trata de outro poder, mas eles não se furtaram a depor. Todos os partidos integraram a CPI. Os inquiridores mais rigorosos pertenciam ao PT e ao PDT, mas só uma vez tive de mandar a taquigrafia desconhecer uma referência impolida de um inquiridor do PDT ao deputado Ibsen Pinheiro, que estava depondo.
A comissão se dividia em subcomissões, com seus dirigentes coordenados por mim. Aplicando o Código de Processo Penal, permitimos que os advogados dos inquiridos acompanhassem os depoentes sem que lhes dessem orientação durante a oitiva. Havíamos, em três meses de intenso labor, concluído pela indiciação de 18 parlamentares das duas Casas do Congresso para cassação dos mandatos quando o líder do PFL se opôs à nova prorrogação que pedimos para concluir mais 14 casos em exame. O argumento do líder era que a CPI estava prejudicando a revisão constitucional, que tinha como relator o então deputado Nelson Jobim.
Ainda que eu insistisse que éramos 30 integrantes da CPI e havia mais de 400 congressistas a ela não pertencentes, não cedeu o líder, sem cuja bancada a prorrogação não seria aprovada.
Findo o relatório, encaminhamo-lo ao Congresso. Na Câmara, quatro renunciaram. Nunca mais se elegeram. Dez foram cassados e quatro absolvidos, julgados nos plenários das duas Casas, um senador, por manobra de parte do Senado, alegando que se tratava de cardiopata grave. Morreu pouco depois. Dos 14 restantes, enviamos à Câmara o que constava a respeito de cada um.
Ao então procurador-geral da República, Aristides Junqueira, levamos em mãos, o relator e eu, o relatório final, na expectativa de adequada ação penal para recuperar o dinheiro mal havido. Desconheço alguma providência. Grande número de jornalistas e apresentadores de TV acompanhou diariamente nossos trabalhos. Dois escreveram um livro depreciativo à CPI, que Boris Casoy, que o prefaciou, nunca censurou a CPI. Disse-me tê-lo feito apenas para não desestimular jovens colegas. No Congresso, não tiveram repercussão.
Só agora soube de um suposto episódio atribuído ao líder Luiz Eduardo, que teria feito as modificações que lhe aprouve, no relatório. Um delírio de mitomania. Uma ofensa caluniosa ao relator, incapaz de tal indignidade. Mas, se Luiz Eduardo tivesse tal autoridade, por que não retirou, de logo, do relatório, membros do PFL seus amigos, como o nobre deputado Ricardo Fiúza, por quem se empenhou na absolvição da Câmara?

Jarbas Passarinho, 85, é coronel da reserva. Foi governador do Pará (1964-65) e senador pelo Estado em três mandatos (1967-74, 1975-82 e 1987-95), além de ministro da Educação (governo Médici), da Previdência Social (governo Figueiredo), e da Justiça (governo Collor).


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