São Paulo, segunda-feira, 16 de setembro de 2002

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Dom Lucas, uma vocação

ROBERTO ROMANO


Diplomata e dirigente, ajudou a manter a coesão eclesiástica e melhorou o nexo entre igreja e Estado no Brasil

"Cada um tem de Deus o seu próprio dom; um, na verdade, de um modo, outro de outro (Paulo apóstolo, 1 Coríntios, 7)."
Essas frases evidenciam a distribuição das vocações na igreja. Max Weber, ao examinar as diferenças entre católicos e reformados, analisa o campo dos ofícios religiosos. Segundo Lutero, cada ser humano encontra em si mesmo o comando que emana do ser divino. No relacionamento direto com Deus, por intermédio da Escritura, joga-se o sentido das existências.
Como recorda E. Curtius, Lutero modifica a velha metáfora do teatro para explicar os vínculos entre seres finitos e divinos. Nossa vida seria um "jogo de Deus" ("Spiel Gottes"). Nesse espaço teatral se determina a justificação.
Para Lutero, a história profana seria apenas um "teatro divino de marionetes". A responsabilidade ética e moral se completa, na teologia, por outra figura de linguagem. A pessoa é máscara teatral ("prosopon", no grego, "persona" em latim) que se apega aos indivíduos, definindo seu papel no mundo.
À diferença das representações protestantes, o catolicismo, embora proclame a responsabilidade e os papéis sociais dos indivíduos, ensina que a vida eclesiástica possui eminência sobre a de seus componentes. A pessoa relevante, na igreja, é a comunidade dos fiéis. Os ofícios, nela, de forma hierarquizada e cheia de matizes, constituem chamado divino e se exercem no coletivo dos fiéis e dirigentes. Cada membro do corpo místico possui uma vocação. O carisma e o sentido de cada uma delas pertencem à igreja.
O "complexio oppositorum" católico acolhe os mais diversos modos de atuação. No clero, pelo menos três vocações são reconhecidas e incentivadas. A missão intelectual é bem acolhida pela "Mater et Magistra". Pesquisas científicas, humanísticas, artísticas são incentivadas para os membros da hierarquia e para os fiéis. Ordens como a dos frades franciscanos, dominicanos, beneditinos, que deram grandes bispos à igreja, fornecem ao todo eclesiástico as razões de sua existência.
Muitos bispos acentuam, no seu labor, esse lado especial. Outros dedicam-se à prática pastoral direta, a chamada cura d'almas. Trata-se de um mergulho cotidiano na massa dos fiéis, colhendo dores e esperanças, defendendo o rebanho nas horas amargas. No Brasil, este cuidado é a tônica de pessoas como Helder Câmara, Paulo Evaristo Arns, Eugênio Salles, cada um com a sua ideologia e seu entendimento social e político.
Outra missão eclesiástica é a desenvolvida tendo em vista administrar a igreja, realidade internacional complexa. O controle dos procedimentos gerais, a legalidade interna, os tratos entre as igrejas nacionais, as lutas com os Estados, tudo isso é vital na forma católica de existência.
Dom Lucas Moreira Neves localizou-se no terceiro setor mencionado acima. Diplomata por excelência, ele serviu quando a igreja enfrentou o dilema de romper com o governo militar, em favor dos torturados pelo regime, ou de com ele prever atenuações num "modus operandi" truculento. Ele também foi intermediário entre as várias alas do clero, divididas no entendimento dos rumos pastorais. E serviu, no atual pontificado, para trazer os comandos de Roma à hierarquia brasileira. A igreja sofreu um grande Termidor no período, depois da revolução trazida pelo Vaticano Segundo.
Lucas Moreira Neves ajudou a conservar a unidade interna da igreja, com o predomínio absoluto de Roma.
Escritor soberbo, o cardeal Neves mereceu, como poucos, sua cadeira na ABL. Diplomata e dirigente, ajudou a manter a coesão eclesiástica e melhorou o nexo entre igreja e Estado no Brasil, tanto na ditadura quanto na democracia. Episódios como a sua recusa de testemunhar, na Auditoria Militar de São Paulo, em favor de Frei Tito, invocando a sua função pastoral, trouxeram reprovações à sua pessoa. Eu mesmo o critiquei acerbamente. Todos os fatos positivos e negativos de sua carreira, entretanto, devem ser postos em perspectiva.
Que sua figura terrena seja pesquisada e discutida. Mas seja reservado o juízo último para o Único que tem poderes para tanto. Descanse em paz.

Roberto Romano, 56, filósofo, é professor titular de ética e filosofia da Unicamp.


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