São Paulo, sábado, 16 de novembro de 2002

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CLÓVIS ROSSI

As almas congeladas

OXFORD - As duas mocinhas se matam para empurrar escada acima o carrinho lotado de roupas de cama do Oxford Hotel, quase à beira da estrada que leva desta cidade universitária a Londres.
De repente, em um português com o mais puro sotaque mineiro, uma delas diz: "Ai, eu vou cair". Não caiu por pouco. Pergunto: "O que vocês, brasileiras, estão fazendo aqui neste fim de mundo?".
A mineirinha responde: "O senhor sabe que eu nem sei? Queria tanto um solzinho".
É natural: Oxford, como todo o Reino Unido nesta época do ano, é plúmbea, o frio lá fora é de rachar até a alma (3º C, pouco mais ou menos). É verdade que a calefação torna a temperatura interna até agradável. Permite que as moças empurrem seu carrinho e façam suas tarefas com roupas leves.
Mas a visão do cinza pesado lá de fora parece penetrar todas as frestas e invadir o hotel, congelando-o.
O calor é mais forte, bem mais forte, junto ao fogão industrial do "Ask", restaurante popular da George Street, bem no centro de Oxford, a passos de alguns dos incontáveis prédios da mitológica universidade. São 900 anos, ao menos, de tradição como centro docente.
Mas lá também o português soa alto e forte. Palavrões mil, que, pelo menos teoricamente, há poucas chances de encontrar entre os fregueses alguém que entenda esse exótico idioma. Idioma falado em dois acentos, o português do Brasil e o português de Portugal.
Ironia (ou consequência da história de ambos?), colonizado e colonizador se encontraram, séculos depois, à beira do fogão.
Hoje é assim em muitas partes do mundo, até nas mais improváveis. Um brasileiro desgarrado tocando o trabalho pesado, às vezes sem saber direito o que faz por lá.
Pergunto de Luiz Inácio Lula da Silva para as mocinhas do hotel Oxford. É como se lhes perguntasse de um duende. Não processaram a eleição, não sabem se o duende é capaz de aquecer almas geladas.



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