São Paulo, terça-feira, 17 de maio de 2005 |
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TENDÊNCIAS/DEBATES Silêncio interuniversitário
GUILHERME GOMES
A universidade na qual a pesquisa constituía-se em centro da vida acadêmica e preservava a formação humanista, dando a ela um novo sentido, foi uma das bases da força intelectual e científica da Alemanha. Foi essa universidade que Durkheim conheceu e admirou em 1885 e foi referência para a reforma da Sorbonne na Terceira República. Foi esse modelo que esteve na origem do projeto de universidade em São Paulo, na década de 1930. Esse tipo de universidade é hoje alvo de crítica aguda por parte daqueles que só enxergam nele altos custos, corporativismo e dificuldade em oferecer respostas rápidas que acompanhem o dinamismo das economias contemporâneas. E a ele são contrapostos dois outros modelos: o das universidades de elite norte-americanas, voltadas para a produção de tecnologias de ponta em áreas específicas; e os cursos superiores voltados para a formação intensiva de mão-de-obra qualificada para responder a problemas singulares. Apesar de estar sob forte pressão, a universidade humboldtiana deve sobreviver nesse processo, caso contrário teríamos como que uma espécie de suicídio civilizatório da Europa. O que se depreende dessa experiência é que, onde existe uma sólida rede de grandes universidades tradicionais, a proliferação de instituições baseadas em outros modelos não deve ser temida. O sistema que se redesenha é composto por tipos e unidades concorrentes e complementares. E é fundamental que, em suas interfaces, haja permeabilidade e trocas constantes. Não se trata apenas da circulação de estudantes em formação mas também da articulação de grupos de pesquisa e docência em redes interuniversitárias e internacionais. Quanto menos fechada em si mesma a universidade, menos ela é vulnerável à autocomplacência. O que chama a atenção no debate sobre a reforma no Brasil é uma espécie de uníssono conservador contra interferências externas no ensino superior. Por um lado, as interferências estatais, que se expressam no excesso de normas previstas no projeto. Por outro lado, as interferências da comunidade local ou regional, já que o anteprojeto indica que a universidade deve se submeter a um conselho comunitário social que deverá subsidiar a fixação de suas diretrizes. A crítica conservadora vê nisso apenas a possibilidade da interferência de movimentos sociais na paz dos negócios acadêmicos. Mas é preciso atentar para outro aspecto dos conselhos comunitários. A universidade já experimentou embates de toda ordem com a igreja, o Estado, a cidade, o capital. A relação com o ambiente em que se instala não pode ser definida de antemão pelo critério da integração, que só pode resultar de processo nunca destituído de conflito. Mas, se a universidade em certos contextos deve resistir a interferências externas, faz parte de sua lógica estar aberta às outras. Quando surgiu, no século 12, não existiam nações, mas ela já nasceu internacional, marcada pela forte presença do estudante e do professor estrangeiro. Os méritos da reforma proposta para a educação superior no Brasil são muitos, mas ela se furtou de pensar algo essencial. No projeto são desenhadas instituições autárquicas, nada se diz da necessidade de se relacionarem. O texto é minucioso ao fincá-las em seu local, mas é omisso no que diz respeito ao espaço interuniversitário e ao caráter internacional que cada vez mais delas se exige. A palavra universidade é com muita freqüência associada ao conjunto variado das ciências. Porém, na sua origem, seu sentido estava ligado à idéia de corporação. No direito romano, "universitas" remetia à idéia de coletividade, definida como "um conjunto ou coleção, em um só corpo, de uma pluralidade de pessoas". "Universitas" podia remeter à humanidade, à igreja, a uma cidade e também à corporação de professores e estudantes reunidos em uma instituição. Se esse sentido não é ordinariamente lembrado, no entanto, ele está impregnado na própria existência da universidade. Como corporação, ela deve se proteger das ações deletérias de entidades de outro tipo, inclusive do Estado em certas circunstâncias. Mas o que ela menos deve temer é o Estado democrático e republicano, na medida em que educação e produção de conhecimento lhe são essenciais. Esse tipo de Estado só sobrevive se traz para dentro de si os representantes da universidade para lidarem com o que diz respeito a ela. Mas estas são reflexões sobre a universidade propriamente dita. Escapam delas as instituições de ensino superior que são propriedade privada de alguém, que submete aos seus ditames professores e estudantes, impedindo que emerjam como corporação. Estas, sem dúvida, não ficam muito à vontade na República. A arena de disputa que se instaurou com o debate da reforma da educação superior é sinal de maturidade. E àqueles que estão na testa do processo deve ser reconhecido o mérito. Até agora, seu propósito foi o interesse público; e sua atuação, orientada para o convencimento e a deliberação democrática. Guilherme Gomes, 50, é professor associado do Departamento de Antropologia e chefe-de-gabinete da reitoria da PUC-SP. Autor de "Palavra Peregrina: o barroco e o pensamento sobre artes e letras no Brasil". @ - gomesjr@uol.com.br Texto Anterior: TENDÊNCIAS/DEBATES Jorge Bornhausen: Democracia x populismo Próximo Texto: Painel do leitor Índice |
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