São Paulo, quinta-feira, 17 de maio de 2007

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Anvisa, homeopatia e dengue

CELIO LEVYMAN


A homeopatia lembra mais uma religião, com dogmas e metafísica, que um método baseado na ciência para melhorar a saúde


COM SAÚDE não se brinca. A ética dos profissionais da saúde obriga a fazer o bem ao paciente, e não a fazer o mal ou a utilizar métodos não comprovados de diagnóstico e tratamento.
Há algum tempo, a Secretaria de Saúde de São José do Rio Preto (SP) passou a distribuir medicamento homeopático para dengue sem prescrição médica. A secretaria estadual da área interferiu, proibindo essa prática, por serem desconhecidos os princípios científicos que embasam a citada medicação e por nem se saber como ela foi fabricada. A prefeitura recorreu à Justiça, que ordenou a dispensação do remédio -porém, com receita médica.
A Folha noticiou há pouco que, em reunião conjunta da Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária) e das secretarias de Saúde, chegou-se a um acordo para o uso do dito remédio -porém, com prescrição médica.
Há um sério problema envolvido nessa questão, e é justamente a homeopatia. Ela é praticada em vários lugares do mundo, mas, via de regra, por quem nada tem a ver com a área da saúde, embora alguns médicos se tornem seus adeptos.
No Brasil, em 1980, cerca de 300 médicos exerciam a homeopatia. Eles convenceram o Conselho Federal de Medicina a torná-la especialidade médica. Paradoxo: o Brasil é o único país do mundo em que a homeopatia desfruta de tal privilégio, ficando lado a lado com as demais especialidades.
No Canadá, não há homeopatas desde 1950. Tampouco os há na maioria dos países europeus. Nos EUA, um poderoso lobby de farmácias conseguiu que o Congresso, contra as evidências científicas, aprovasse tais medicamentos como "suplemento vitamínico", dispensados portanto da receita médica.
Embora legalmente eu seja obrigado a aceitar a homeopatia como especialidade, discordo de que ela desfrute do mesmo status das demais especialidades e, como outros colegas do país, mais ilustres, desejo que seja revista aquela resolução de 1980.
E por quê? A homeopatia não tem sustentação científica nos dias de hoje. É praticada da mesma maneira há muitos anos. Não há provas de sua eficiência, a não ser em casos isolados de doenças simples. E, mais importante, os homeopatas não aceitam comparar seus métodos com aqueles da medicina tradicional nem fazem estudos cientificamente validados, como em qualquer área da ciência.
Em outras palavras, a homeopatia lembra muito mais uma religião, com dogmas e interpretação metafísica, que um método baseado na ciência para melhorar a saúde da população.
Minha posição é conhecida por muitos e certamente angariei adversários com o passar do tempo graças a isso. Mas nada me impede de solicitar aos conselhos de medicina e às autoridades sanitárias que revisem suas posições.
Depois de 1980, o número de homeopatas aumentou para milhares, assim como as farmácias especializadas nessa área. Por outro lado, quantos homeopatas ou ambulatórios dessa área ou seus medicamentos existem em nosso combalido SUS? A conclusão lógica é que a maioria dos que exercem a homeopatia atendem preferencialmente pacientes particulares ou planos de saúde que a contemplem. Seria reducionismo deixar essa questão como particularmente de ordem econômica?
O caso de São José do Rio Preto não poderia ser mais ilustrativo, pois qualquer um que achasse que fosse portador da doença ou mesmo quisesse se prevenir dela poderia buscar o citado medicamento sem avaliação médica!
Houve esse acordo -a bioética é uma área mais recente que dá um importante poder à autonomia do paciente: a ele cabe decidir como lidar com sua saúde e suas moléstias.
Contudo, isso não exime as autoridades sanitárias, como a Anvisa e as secretarias de Saúde, assim como os conselhos de medicina, do dever ético de agir com rigor na avaliação de seus atos, em benefício da saúde individual e coletiva. E de exigir os imprescindíveis dados científicos, aceitos em todo o mundo, que comprovem a eficácia do método.
Como recente editorial de uma das mais importantes revistas médicas de todo o mundo -"The New England Journal of Medicine"- afirmou: não pode haver duas medicinas, a tradicional e a "alternativa". Um método qualquer, por mais esdrúxulo que pareça à princípio, desde que comprovado com o método científico, passa a fazer parte de uma coisa apenas: medicina.

CELIO LEVYMAN , 50, mestre em neurologia clínica pela Escola Paulista de Medicina da Unifesp (Universidade Federal de São Paulo), é médico. Foi conselheiro e diretor do Cremesp (Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo).

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