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Espinha dorsal da terça-feira
CARLOS HEITOR CONY
Rio de Janeiro - Não dava importância a sonhos apesar da extensa literatura a respeito, da Bíblia a Freud. Foi
durante o sono de Adão que nasceu
Eva. Jacó lutou com o anjo e virou Israel. Em sonho, outro anjo avisou a
José para fugir da matança de Herodes. E outro José explicou o sonho do
faraó e virou ministro.
Baixando de nível, Freud tentou explicar comportamento, fobias, neuras
e taras por meio dos sonhos. Somando
tudo, decidi não ligar para o que sonho ou deixo de sonhar. Contudo, recentemente, tive um sonho que acabou me rendendo um romance -e depois de 23 anos sem escrever ficção cometi estúpida reincidência.
Eis que, na manhã de ontem, acordei para fazer a crônica e descobri que
continuava com sono e sem assunto.
Olhei o relógio, dava tempo para dormir mais uns minutos.
Sonhei que uma virgem (nem sei por
que era virgem, não pude testar, mas
que era virgem, era) enorme, de três
metros de altura, tinha um livro cravado na testa e um gato azul e preto
em cima do ombro. Ela me olhava como se fosse dona de mim -e, no sonho, era mesmo (podia ser dona fora
do sonho, mas isso já não seria sonho,
mas delírio).
Eis que havia alguma coisa escrita
no livro e com o olhar ela ordenou que
me aproximasse. Foi o que fiz, numa
mistura de receio e prazer. Só então
consegui ler o que ali estava escrito:
"A espinha dorsal da terça-feira".
No momento, entendi perfeitamente
o que aquilo queria dizer. Mais: era
como uma explicação de todas as coisas inexplicáveis do universo. Evidente que as terças-feiras têm uma espinha dorsal, desde pequenino sabia
disso.
Senti um bem-estar, uma paz com o
mundo e comigo. Todos os meus problemas findavam ali, todas as dúvidas
e dores e pânicos.
Acordei e nem era terça-feira, era
quarta. Não dá para escrever um romance, mas dá para a crônica de uma
quinta-feira invertebrada.
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