São Paulo, quinta, 17 de julho de 1997.



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Espinha dorsal da terça-feira

CARLOS HEITOR CONY

Rio de Janeiro - Não dava importância a sonhos apesar da extensa literatura a respeito, da Bíblia a Freud. Foi durante o sono de Adão que nasceu Eva. Jacó lutou com o anjo e virou Israel. Em sonho, outro anjo avisou a José para fugir da matança de Herodes. E outro José explicou o sonho do faraó e virou ministro.
Baixando de nível, Freud tentou explicar comportamento, fobias, neuras e taras por meio dos sonhos. Somando tudo, decidi não ligar para o que sonho ou deixo de sonhar. Contudo, recentemente, tive um sonho que acabou me rendendo um romance -e depois de 23 anos sem escrever ficção cometi estúpida reincidência.
Eis que, na manhã de ontem, acordei para fazer a crônica e descobri que continuava com sono e sem assunto. Olhei o relógio, dava tempo para dormir mais uns minutos.
Sonhei que uma virgem (nem sei por que era virgem, não pude testar, mas que era virgem, era) enorme, de três metros de altura, tinha um livro cravado na testa e um gato azul e preto em cima do ombro. Ela me olhava como se fosse dona de mim -e, no sonho, era mesmo (podia ser dona fora do sonho, mas isso já não seria sonho, mas delírio).
Eis que havia alguma coisa escrita no livro e com o olhar ela ordenou que me aproximasse. Foi o que fiz, numa mistura de receio e prazer. Só então consegui ler o que ali estava escrito: "A espinha dorsal da terça-feira".
No momento, entendi perfeitamente o que aquilo queria dizer. Mais: era como uma explicação de todas as coisas inexplicáveis do universo. Evidente que as terças-feiras têm uma espinha dorsal, desde pequenino sabia disso.
Senti um bem-estar, uma paz com o mundo e comigo. Todos os meus problemas findavam ali, todas as dúvidas e dores e pânicos.
Acordei e nem era terça-feira, era quarta. Não dá para escrever um romance, mas dá para a crônica de uma quinta-feira invertebrada.





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