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Guerra suja
BORIS FAUSTO
A manipulação do medo, na história do Brasil, foi sempre marca registrada da direita. Agora, curiosamente, mudou de origem
OS BOATOS sem fundamento e a
exploração do medo passaram
a ser a marca da campanha
eleitoral do candidato-presidente e
de seu partido. Em poucas palavras,
entrou em cena a guerra suja.
A manipulação do medo, na história do Brasil, foi sempre marca registrada da direita. Quando Getúlio Vargas e a cúpula militar costuravam o
golpe do Estado Novo, os integralistas, que então se alinhavam com o
presidente, vieram em seu auxílio, fabricando um falso dossiê sobre um
"Plano Cohen" -cuja denominação
judaica (Cohen) não era ocasional.
Recordando, o suposto plano foi
forjado em setembro de 1937 pelo então capitão Olímpio Mourão Filho, lotado no estado-maior do Exército e
chefe do "serviço secreto" da Ação Integralista Brasileira (AIB), versão tropical do fascismo. O "plano comunista" consistia num imaginativo desfile
de horrores, prevendo como lance final a tomada do poder, após incêndios
de prédios públicos, saques, depredações e violências contra as mulheres.
Imediatamente, a "descoberta" do
plano foi estampada nos jornais e
martelada na emissão radiofônica da
imortal "Hora do Brasil". Por mais inverossímil que a história fosse -entre
outras razões, porque os comunistas
tinham sido duramente reprimidos
após a aventura de 1935-, ela produziu os efeitos desejados ao criar um
clima de medo e de excepcionalidade
que contribuiu para justificar o golpe.
Saltemos no tempo. Em 1964, os
articuladores do movimento militar
que liqüidou o regime democrático
de 1945-1964 souberam explorar habilmente a tecla do medo, aproveitando o radicalismo verbal do governo Jango e de seus aliados do "Partidão". A tal ponto que puderam evitar
uma simples quartelada contando
com a mobilização da classe média
nas grandes cidades, angustiada pela
suposta perda de suas casas -por
causa da cogitada reforma urbana-, e
pela ameaça maior da implantação do
comunismo.
Vamos a um novo salto no tempo,
felizmente em direção a uma época
melhor. Isso porque, nos dois exemplos já lembrados, o medo era utilizado a serviço da implantação de ditaduras, ao passo que, nos dias que correm, falamos da condenável instrumentalização desse sentimento, mas,
pelo menos, no âmbito de um regime
democrático, ainda que sujeito a chuvas e trovoadas.
Nessa nova fase que o país vive desde os anos 80 do século passado, o
próprio presidente Lula foi vítima de
uma exploração do medo focada no
que representaria sua vitória, o que
facilitou seu fracasso em três tentativas de alcançar o poder. Também
aqui, a fala radical de Lula e do PT
contribuíram para estimular e potencializar o medo.
Agora, curiosamente, a exploração
desse sentimento mudou de origem,
emanando do que se convencionou
chamar de "esquerda" -uma falsa esquerda, como se constata pelas práticas corruptoras que comprometem
as instituições democráticas, pelas
alianças espúrias, pelo estilo populista etc. De fato, o candidato-presidente e seus acólitos ministeriais e intelectuais lançaram uma ofensiva de
boatos no sentido de que, se a oposição vencer, vai desmontar o Estado,
privatizando tudo, vai reduzir benefícios conquistados pelos idosos, vai
acabar com o Bolsa Família e atirar o
país na recessão.
Essas acusações, em princípio, não
deveriam sequer ser consideradas,
valendo o que valeu, por exemplo, o
diagnóstico de sábios petistas de que
o Plano Real provocaria uma imensa
recessão. Mas o fato é que elas sensibilizam alguns setores, como o funcionalismo público, e, principalmente, aterrorizam os eleitores mais carentes, que dependem de benefícios
do Estado para sobreviver.
"A esperança venceu o medo" era
um dos lemas que embalaram multidões festejando a posse de Lula, em
janeiro de 2002. Muitos se decepcionaram, seja porque não se consumou
"a ruptura do modelo" -aliás, nesse
ponto, para alívio do país-, seja porque os escândalos liqüidaram os sonhos.
Cabeças rolaram porque não se
ajustavam ao aparelho -que o diga a
turma do PSOL-, e, outras, envolvidas nos escândalos, integrantes ou
fiéis seguidores da cúpula do PT, foram decapitadas mais na aparência
do que na realidade.
Diante desse quadro, seria o caso
de inverter o lema e dizer que o medo
venceu a esperança? Não creio. Apesar dos pesares, há setores da sociedade e das lideranças políticas que
dispõem de clareza e de energia para,
de uma forma ou de outra, opor-se
aos desmandos da atual conjuntura
que vão muito além dos lances de
uma guerra suja.
BORIS FAUSTO, historiador, é presidente do Conselho
Acadêmico do Gacint (Grupo de Conjuntura Internacional)
da USP. É autor de, entre outras obras, "A Revolução de
30" (Companhia das Letras).
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