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São Paulo, sexta-feira, 18 de abril de 2003

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TENDÊNCIAS/DEBATES

Haverá paz?

GERALDO MAJELLA AGNELO

"Caifaz, que era o sumo sacerdote daquele ano, disse-lhes: "Vós não entendeis de nada. Não compreendeis que convém um homem morrer pelo povo para que a nação toda não pereça". Não o disse por si mesmo, mas, sendo o sumo sacerdote daquele ano, profetizou que Jesus iria morrer pelo povo, e não somente pelo povo, mas para reunir numa unidade os filhos de Deus dispersos" (João, 11, 49-52).
A Sexta-Feira Santa da Paixão e morte de Jesus na cruz nos oferece a oportunidade de refletir sobre o conflito dos EUA contra o Iraque, com todas as consequências, ainda não conhecidas, que advirão para a humanidade.
Sobretudo é importante considerar que as armas dos homens são de terrível poder de destruição e morte, ao passo que as armas de Deus são para dar vida -e vida em abundância; são armas do amor, do perdão, da misericórdia, da verdade, da justiça, da fraternidade e da solidariedade. Cristo morreu para dar a vida, para indicar um caminho novo a fim de construir a paz.
Foram inúteis todas as manifestações de apelo à paz. A guerra do ódio falou mais forte do que as orações, do que os apelos do papa. Ela foi longamente preparada com lúcida determinação. Caiu o ditador Saddam. Existem mais de 50 "Saddams" em outros tantos Estados não-democráticos. Quais os próximos a serem visitados com a declaração de guerra "preventiva", para aliviá-los do peso do petróleo em seu subsolo? Por que não são visitadas tantas nações africanas para serem libertadas da fome, da doença, da miséria, da falta de dignidade humana? Terá sido afastado o perigo de ataques terroristas? E a sede de vingança? São inumeráveis perguntas nos últimos tempos, com poucas certezas. Só há uma certeza, a que vem da fé.
A reflexão cristã não se deterá para explicitar, sempre com novas luzes e acentos, a revelação contida na palavra de Deus. O Concílio Vaticano 2º fez amadurecer uma mentalidade completamente nova, para enfrentar os sempre mais preocupantes cenários da guerra moderna. "Pacem in Terris" e "Gaudium et Spes" são dois fachos de luz que, junto com importantes aprofundamentos da ética teológica, iluminaram o caminho do povo de Deus e mostraram ao mundo uma igreja preocupada com a sorte da humanidade inteira, a partir dos pobres e dos oprimidos.
A encíclica do papa João 23 completou 40 anos em 11 de abril. Foi endereçada não só aos fiéis católicos, mas a todos os homens de boa vontade. Foi recordado o papel da Santa Sé em esconjurar o conflito EUA-URSS sobre os mísseis em Cuba. Era o resultado prático do desenvolvimento da reflexão sobre a guerra, atenta à história e em diálogo com o mundo, quando declarava loucura pensar que a guerra fosse o instrumento apto a resgatar os direitos violados.


Por que não são visitadas tantas nações africanas para serem libertadas da fome, da doença, da miséria?


Sobre as armas de destruição em massa, os padres conciliares pronunciaram o único anátema do Vaticano 2º: "Com o incremento das armas científicas, têm aumentado desmesuradamente o horror e a maldade da guerra. Pois, com o emprego de tais armas, as ações bélicas podem causar enormes e indiscriminadas destruições, que, desse modo, vão muito além dos limites da legítima defesa (...) Toda ação de guerra que tende indiscriminadamente à destruição de cidades inteiras ou vastas regiões e seus habitantes é um crime contra Deus e o próprio homem, que se deve condenar com firmeza e sem hesitação" ("Gaudium et Spes", n. 80).
Sem percorrer ulteriores análises, constata-se como aconteceu a passagem da teoria da guerra justa à da legítima defesa; o valor que deve ser defendido não são mais os direitos de cada Estado soberano, mas o bem comum da inteira família humana. Este é um ponto adquirido muito importante (cf. GS, 82): A igreja não teoriza a não-violência absoluta que permanece opção pessoal possível, mas proclama o direito/dever de defesa, sobretudo de populações inermes, de comunidades e Estados vítimas de injustas agressões. Com isso, a liceidade do uso da força fica notavelmente circunscrita e, porém, extensível a formas de "ingerência humanitária".
Pio 12 havia excluído o recurso à guerra como instrumento de combate ao comunismo. Paulo 4º pronunciou-se de modo fortemente limitativo sobre o uso da violência "revolucionária" contra poderes opressivos. Mas, sobretudo, desenvolveu-se positivamente o tema da paz, não como simples renúncia à guerra e abstenção da violência, mas como elemento propulsor de direitos. Liberdade, democracia, autêntico desenvolvimento humano e social.
Há uma linha coerente de desenvolvimento entre os dois pontificados: desde a "paz, obra da justiça", do papa Paulo 4º, à "paz, obra da solidariedade", do papa João Paulo 2º, particularmente na "Sollicitudo Rei Socialis". São constantes as afirmações sobre a dignidade da pessoa e sobre seus direitos, a procura de valores humanamente e civilmente divisíveis com pessoas e povos de religiões e crenças diversas. Promoveram-se encontros ecumênicos de oração, apelos comuns, numerosas ocasiões de conhecimento e diálogo. Vivemos anos memoráveis da queda de tantos muros, mesmo se nem sempre as pedras caídas tenham servido para construir pontes. A igreja tem contribuído para a reflexão cultural sobre direitos e a democracia, para a afirmação de valores "leigos" de forte raiz cristã no mundo.
Prosseguindo esse caminho ideal, João Paulo 2º pronunciou-se com firmeza, muitas vezes, contra o temido e explosivo conflito iraquiano. A mensagem de 1º de janeiro de 2003 é densa de citações e atualizações da "Pacem in Terris", em particular repisando os quatro pilares da paz: verdade, justiça, amor e liberdade. O discurso ao corpo diplomático em 13 de janeiro, com explícita referência à Carta da ONU, recordava que "não se pode recorrer à guerra, mesmo que se trate de assegurar o bem comum, senão como extrema possibilidade e no respeito de precisas e rigorosas condições". Devem ser lembrados os cardeais enviados pelo papa para levar seu apelo de paz a Saddam e a Bush.
Cada domingo, à hora da recitação do "Ângelus", o papa convidava a explorar todos os espaços de tratativas ainda possíveis. A reprovação da guerra tomou acentos particularmente vibrantes em 16 de março, recordando às jovens gerações a sua experiência pessoal de sobrevivente do último conflito mundial. A legítima autoridade da ONU não participou da decisão, temendo-se que o seu Conselho de Segurança não autorizasse uma intervenção já decidida pelo governo americano. Igualmente, a ONU, até agora, é deixada de lado para presidir a reconstrução do Iraque.
A paz é e será sempre o grande desejo e anseio da humanidade. Ela deve ser preparada pela educação da pessoa e da comunidade. Sua construção supõe cuidados e fundamentos sólidos. Sem justiça, sem perdão, sem solidariedade, fraternidade e diálogo incansável não há paz. Os gritos e apelos por paz continuarão. Que cesse toda a intransigência. O mundo pode ser melhor; depende de cada um de nós. Depende de boa vontade e ação. Deus ajude a todos nós.

Dom Geraldo Majella Agnelo, 69, é cardeal-arcebispo de Salvador (BA) e primaz do Brasil.


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