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São Paulo, domingo, 18 de maio de 2003

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DORES EVITÁVEIS

"Todo mundo é capaz de dominar uma dor, com exceção de quem a sente". As palavras de Shakespeare, no terceiro ato de "Muito Barulho por Nada", ilustram à perfeição o problema da dor na medicina hoje. Apesar de a farmacologia disponibilizar um amplo arsenal de várias classes de drogas para controlar a dor, muitos pacientes ainda são forçados a conviver com ela.
São várias as razões para o paradoxo. Existem desde motivos bastante prosaicos, como a baixa qualidade da oferta de medicamentos oferecidos pela rede pública e a burocracia necessária para obter drogas de uso controlado, até fatores mais filosóficos, como a subjetividade da dor e as complexas relações de poder que ela encerra, seja na relação médico-paciente, seja no ambiente familiar.
O fato que parece incontestável é que o brasileiro sente bem mais dor do que seria necessário. A acusação é da Organização das Nações Unidas e tem fundamento no reduzido consumo de morfina e seus derivados por aqui. Países desenvolvidos utilizam dez vezes mais opióides do que o Brasil. Como a incidência de moléstias que provocam dores não é tão diferente assim, conclui-se que muitos brasileiros estão padecendo de dores, em tese, evitáveis.
É preciso, sem dúvida nenhuma, ampliar a oferta de drogas analgésicas na rede pública de medicamentos. Hoje, só a morfina, a codeína e a metadona são distribuídas. E já existem medicamentos mais poderosos e com menos efeitos colaterais.
Iniciativas como o Programa de Assistência à Dor e Cuidados Paliativos, do Ministério da Saúde, que oferece "cestas" de medicamentos e procedimentos a centros de referência, são elogiáveis, mas ainda não bastam, como revela o baixo interesse dos hospitais em participar deles.
Para enfrentar melhor a situação, é preciso também trabalhar o profissional de saúde, que nem sempre dá o devido valor às queixas de seus pacientes e poucas vezes consegue acompanhar os rápidos avanços na analgesia. Velhos preconceitos deveriam ser quebrados. É ainda muito usado, por exemplo, o argumento de que não se deve prescrever morfina ou derivados, mesmo a pacientes terminais ou que padecem de dores crônicas intratáveis, devido ao risco de que desenvolvam dependência. Convenha-se que, para quem está morrendo, a dependência não costuma ser um problema mais grave que dores às vezes excruciantes.
A medicina ainda é impotente diante de muitas doenças, mas isso não significa que ela não seja capaz de diminuir a dor e de conferir mais qualidade à vida, ou ao que dela resta no caso dos pacientes terminais.


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