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CARLOS HEITOR CONY
A passionária
RIO DE JANEIRO - Não tenho certeza, mas disse que se chamava Sandra.
Declarou idade e vocação: 18 anos,
jornalista. Para o ano, se tudo correr
bem para ela, fará comunicação social numa boa faculdade e irá à luta.
Declarou-se revoltada contra tudo,
quer mudar o mundo, acredita que o
mal deva ser condenado e o bem promovido. Culpa a atual geração de
jornalistas, e as anteriores, de complacência ou de cumplicidade com o
erro, com o crime e com a burrice.
Apesar de incluído genericamente
entre os complacentes e cúmplices de
tantas e tamanhas desditas, dei-lhe a
necessária força, desejando-lhe sucesso, fortuna e glória. Ela me olhou espantada, esperava uma reação qualquer, pelo menos uma defesa pessoal
que me atenuasse a complacência e a
cumplicidade.
Pensei que iria afastar-se, ofendida
com o que lhe pareceu uma ironia de
minha parte. Chegou a se virar para
ir embora, reconsiderou, voltou a me
encarar. E tentou explicar-se:
- Li um texto seu numa revista antiga. O senhor dizia cinicamente que
conhecia o bem e o aprovava, mas seguia o mal. Onde se viu isso? Como
deixaram que publicasse tamanha
monstruosidade?
Quem ficou pasmo fui eu. Tomando meu estupor como confissão de
culpa, ela sorriu, como se estivesse
num ginásio de esgrima e dissesse:
"Touché!". Deu-me as costas e sumiu
entre outras pessoas. Não tive tempo
para nada, só mesmo para lamentar
a má sorte que me fizera estudar latim e apreciar Ovídio.
A candidata a passionária da imprensa lera mal e entendera errado
um artigo que publiquei há tempos
sobre o poeta. Foi dele a frase: "Video
meliora proboque, deteriora sequor".
É evidente que dei crédito ao autor e
acrescentei a tradução literal, que
tanto a horrorizou. E, mais uma vez,
amaldiçoei ter gastado o meu latim.
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