São Paulo, domingo, 18 de outubro de 1998

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Oposição estratégica



A oposição consequente é a base de um duplo compromisso: com o mandato oposicionista e com a democracia
TARSO GENRO Não só o governo e o país vão passar por dificuldades extremas no próximo período. A oposição também. E isso ocorrerá não só porque o agravamento da crise aumentará a exclusão e a violência, que não nos favorecem, mas também porque a miséria -"lumpenização" e desemprego- sempre gera condições favoráveis às soluções "fáceis" e "rápidas" (leia-se mais autoritárias), tão ao gosto de setores das camadas médias e das elites conservadoras ou tecnocráticas da sociedade.
Situações dessa natureza sempre abrem espaços políticos, de uma parte, para uma maior direitização de governos em crise (no que se refere ao uso da autoridade sem prévio consenso); de outra (contraditoriamente, como ocorreu na era Collor), permitem uma legitimação artificial do presidente pela via autoritária, o que Fernando Henrique Cardoso deve buscar sofregamente, pois saiu do pleito presidencial debilitado e ainda mais comprometido.
O segundo governo FHC carece de legitimidade. Venceu as eleições principalmente porque instrumentalizou a mídia. Primeiro, fazendo passar a mensagem de que Lula iria desestruturar financeiramente o país; depois, quando isso ocorreu no seu próprio governo -que fracassou não só no "social", mas também no macroeconômico-, foi guindado, aberta e voluntariamente, pela mesma mídia a salvador da pátria, que estaria abalada por uma "agressão especulativa". Se a oposição não considerar esse dado essencial da carência de legitimidade do atual mandato, será uma oposição débil, que esvaziará suas próprias propostas e seu bom desempenho nas urnas.
Não se trata de verbalizar para a sociedade uma linguagem sectária, tão cara à ultra-esquerda. Ela não tem projeto nem compromisso para governar e sempre substitui a luta política em busca do governo pelo fundamentalismo reformista-obreirista que faz pose revolucionária. Trata-se de dar consequência a um projeto renovado, à esquerda, que quer assumir o governo como resultado de uma alteração substantiva nas relações de força entre as classes e na mudança da cultura política do país: ou seja, por um contrato social e um pacto de hegemonia novos.
A legitimidade obtida democraticamente -lembremo-nos- significa a "obtenção de um grau de consenso capaz de assegurar a obediência sem a necessidade de recorrer ao uso da força, a não ser em casos esporádicos". Pelo que se avizinha, com os "ajustes" que foram determinados pelo FMI, teremos situações análogas aos outros países orientados por essa "novel" instituição. A força bruta responderá às mobilizações dos desempregados, e ela será somada ao aumento do caos e da miséria. São os terremotos sociais, empiricamente verificáveis da Coréia à Tailândia, da Venezuela ao Peru.
O uso da máquina, a desigualdade brutal de recursos, a ajuda nem tão inocente do presidente do Tribunal Superior Eleitoral (fiador constitucional da neutralidade do pleito) e a manipulação de algumas pesquisas, em momentos decisivos de formação da opinião, abalam a legitimidade do segundo mandato. Sua meta é prosseguir no plano de governo em curso, que vai aumentar nossa dívida pública e onerar ainda mais quem quer produzir.
Não há possibilidade de uma oposição popular consequente sem desnudar essa carência de legitimidade do atual governo. Qualquer proposta "moderada", em sentido inverso, poderá desestruturar o processo democrático em evolução no país. Ao contrário do que se pode pensar, a moderação conciliatória terá a consequência extrema de forçar uma ruptura de grande parte da sociedade com a oposição inserida na ordem constitucional.
Tal situação geraria uma espiral de violências sociais, que seguramente seria alimento de um caldo de cultura propício à "fujimorização" legitimada. Fazer uma oposição consequente é, portanto, base de um duplo compromisso: com o mandato oposicionista e com a própria democracia.
Devemos nos voltar prioritariamente, como oposição de esquerda, à luta pela consolidação de uma nova cultura política no país, que depende do caráter que dermos à nossa atual postura. Se ela for consequente, contribuiremos para que a sociedade se torne mais madura, admitindo a alternância no governo por meio de projetos sociais claramente contrapostos. Isso permitirá que a democracia brasileira alcance um novo patamar, superior àquele em que as mesmas elites se substituem, pela conciliação e pela manipulação.
2002 é amanhã. Ele passa pelas eleições municipais do ano 2000. Nitidez, dentro e fora do Parlamento, nas propostas para o funcionamento da economia e intensificação das lutas sociais no marco da Constituição -eis as linhas mestras de uma oposição vocacionada para ser governo e para derrotar a barbárie neoliberal.

Tarso Genro, 51, advogado, foi prefeito de Porto Alegre (RS) de 1993 a 96 e deputado federal pelo PT gaúcho de 1989 a 90. É membro do Diretório Nacional do PT e autor de "Utopia Possível" (1994), entre outras obras.



Texto Anterior | Próximo Texto | Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Agência Folha.