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Cotas raciais e diversificação da elite
MARCELO TRINDADE MITERHOF
A companho mais detidamente o
debate sobre o estabelecimento de
cotas raciais nas universidades públicas
brasileiras há pouco mais de três anos.
Pessoalmente, tive de início uma posição contrária às cotas raciais. O argumento basicamente era o de que, como
o único critério democrático de definição da cor ou raça é a autodeclaração, as
cotas provavelmente criariam atritos,
mas se tornariam inócuas. Comecei a
mudar de idéia ao verificar que alguns
especialistas na questão racial se diziam
"mais contra do que a favor" das cotas,
mas faziam questão de ressaltar que não
se posicionariam publicamente dessa
forma: o debate em si já seria um grande
avanço, mesmo que houvesse uma radicalização das posições.
O debate realmente se disseminou. É
difícil encontrar alguém que negue que
a incorporação dos negros ao progresso
econômico experimentado pelo Brasil
no século 20 foi ainda mais malsucedida
do que a redução das desigualdades sociais. Porém a solução propugnada para
a questão racial é a mesma defendida
para o problema social: são necessárias
políticas de universalização da educação, saúde e outros serviços públicos.
É claro que a redução das desigualdades sociais é um objetivo primordial da
incipiente democracia nacional. Mas esse é um problema diverso daquele que
as cotas raciais pretendem enfrentar.
Ainda que o Brasil consiga, nas próximas décadas, reduzir suas disparidades
sociais e o padrão de vida da população
negra melhore, sem uma política de
ação racial afirmativa é provável que os
negros continuem predominantemente
na base da pirâmide social brasileira.
O estabelecimento de cotas pretende
diversificar a composição racial da elite
brasileira, de sua classe média em especial. Se essa diversificação ocorrer conjuntamente com uma diminuição das
diferenças sociais, tanto melhor. Porém,
se o Brasil, injusto como é hoje, tivesse
uma elite mais heterogênea, já seríamos
um país melhor.
Tive poucas oportunidades de presenciar ocasiões em que negros, mulatos e brancos dividiam um espaço claramente de elite em proporções semelhantes. Todas foram em São Paulo e em
eventos ligados à cultura negra. Mas, se
a diversificação racial da elite conseguir
tornar corriqueira essa imagem, duvido
que a Polícia Militar em suas blitze irá
parar muito mais negros do que brancos. Duvido que cruzar com negros ou
mulatos em ruas desertas vá suscitar
mais temor nas pessoas em geral do que
cruzar com brancos, ainda que o problema da violência continue tão grande
quanto é atualmente no Brasil.
O objetivo do estabelecimento de cotas raciais em universidades públicas é,
portanto, o de facilitar -por um tempo
determinado, próximo ao de uma geração- o acesso de jovens negros e mulatos a uma educação superior gratuita e
de qualidade, visando permitir que parcelas da população negra obtenham um
salto social de forma a tornar menos homogêneas do ponto de vista racial as
classes sociais mais abastadas.
O estabelecimento de cotas pretende diversificar a composição racial da elite brasileira, de sua classe média em especial
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Uma política de cotas raciais precisa,
porém, interferir mais diretamente nos
mecanismos de apropriação da renda.
Nesse sentido, são necessárias não só as
cotas nas universidades públicas, como
também o estabelecimento de cotas raciais de empregos. Admito a dificuldade
de implementar uma reserva de 20% ou
30% dos empregos para negros e mulatos. Interferir tão abruptamente na gestão dos negócios privados poderia trazer mais danos do que benefícios.
Mas esse não é o caso do setor público,
que por determinação constitucional
deve contratar por concurso. No
BNDES, por exemplo, o efeito demonstração do aumento do percentual de
técnicos negros ou mulatos seria significativo, já que a elite empresarial nacional negocia diariamente a obtenção de
financiamentos com o banco. É possível
até que a adoção de cotas raciais nas
universidades e no setor público induzisse a iniciativa privada a também promover a diversificação racial de seus
quadros de funcionários, de modo semelhante ao que já vem sendo feito em
relação ao aumento da participação das
mulheres.
Ainda tenho dúvida se o critério de
autodeclaração tornaria as cotas inócuas. Ao Estado não cabe apontar quem
é ou não é negro, mas as pessoas fazem
essa distinção com boa precisão. Isso
significa que haverá provavelmente mecanismos de coerção social que tenderão a desestimular autodeclarações
oportunistas. O estabelecimento de cotas raciais não pretende compensar a
população negra pelos absurdos cometidos contra seus ascendentes por mais
de três séculos -isso é impossível de
ser compensado. As cotas são apenas
uma tentativa de reconciliação do Brasil
consigo mesmo, de agora para a frente.
Marcelo Trindade Miterhof, 30, mestre em
economia pela Unicamp, é economista do
BNDES. Foi editorialista da Folha.
@ - marcelomiterhof@uol.com.br
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