São Paulo, segunda-feira, 19 de julho de 2004

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Cotas raciais e diversificação da elite

MARCELO TRINDADE MITERHOF

A companho mais detidamente o debate sobre o estabelecimento de cotas raciais nas universidades públicas brasileiras há pouco mais de três anos.
Pessoalmente, tive de início uma posição contrária às cotas raciais. O argumento basicamente era o de que, como o único critério democrático de definição da cor ou raça é a autodeclaração, as cotas provavelmente criariam atritos, mas se tornariam inócuas. Comecei a mudar de idéia ao verificar que alguns especialistas na questão racial se diziam "mais contra do que a favor" das cotas, mas faziam questão de ressaltar que não se posicionariam publicamente dessa forma: o debate em si já seria um grande avanço, mesmo que houvesse uma radicalização das posições.
O debate realmente se disseminou. É difícil encontrar alguém que negue que a incorporação dos negros ao progresso econômico experimentado pelo Brasil no século 20 foi ainda mais malsucedida do que a redução das desigualdades sociais. Porém a solução propugnada para a questão racial é a mesma defendida para o problema social: são necessárias políticas de universalização da educação, saúde e outros serviços públicos.
É claro que a redução das desigualdades sociais é um objetivo primordial da incipiente democracia nacional. Mas esse é um problema diverso daquele que as cotas raciais pretendem enfrentar. Ainda que o Brasil consiga, nas próximas décadas, reduzir suas disparidades sociais e o padrão de vida da população negra melhore, sem uma política de ação racial afirmativa é provável que os negros continuem predominantemente na base da pirâmide social brasileira.
O estabelecimento de cotas pretende diversificar a composição racial da elite brasileira, de sua classe média em especial. Se essa diversificação ocorrer conjuntamente com uma diminuição das diferenças sociais, tanto melhor. Porém, se o Brasil, injusto como é hoje, tivesse uma elite mais heterogênea, já seríamos um país melhor.
Tive poucas oportunidades de presenciar ocasiões em que negros, mulatos e brancos dividiam um espaço claramente de elite em proporções semelhantes. Todas foram em São Paulo e em eventos ligados à cultura negra. Mas, se a diversificação racial da elite conseguir tornar corriqueira essa imagem, duvido que a Polícia Militar em suas blitze irá parar muito mais negros do que brancos. Duvido que cruzar com negros ou mulatos em ruas desertas vá suscitar mais temor nas pessoas em geral do que cruzar com brancos, ainda que o problema da violência continue tão grande quanto é atualmente no Brasil.
O objetivo do estabelecimento de cotas raciais em universidades públicas é, portanto, o de facilitar -por um tempo determinado, próximo ao de uma geração- o acesso de jovens negros e mulatos a uma educação superior gratuita e de qualidade, visando permitir que parcelas da população negra obtenham um salto social de forma a tornar menos homogêneas do ponto de vista racial as classes sociais mais abastadas.


O estabelecimento de cotas pretende diversificar a composição racial da elite brasileira, de sua classe média em especial

Uma política de cotas raciais precisa, porém, interferir mais diretamente nos mecanismos de apropriação da renda. Nesse sentido, são necessárias não só as cotas nas universidades públicas, como também o estabelecimento de cotas raciais de empregos. Admito a dificuldade de implementar uma reserva de 20% ou 30% dos empregos para negros e mulatos. Interferir tão abruptamente na gestão dos negócios privados poderia trazer mais danos do que benefícios.
Mas esse não é o caso do setor público, que por determinação constitucional deve contratar por concurso. No BNDES, por exemplo, o efeito demonstração do aumento do percentual de técnicos negros ou mulatos seria significativo, já que a elite empresarial nacional negocia diariamente a obtenção de financiamentos com o banco. É possível até que a adoção de cotas raciais nas universidades e no setor público induzisse a iniciativa privada a também promover a diversificação racial de seus quadros de funcionários, de modo semelhante ao que já vem sendo feito em relação ao aumento da participação das mulheres.
Ainda tenho dúvida se o critério de autodeclaração tornaria as cotas inócuas. Ao Estado não cabe apontar quem é ou não é negro, mas as pessoas fazem essa distinção com boa precisão. Isso significa que haverá provavelmente mecanismos de coerção social que tenderão a desestimular autodeclarações oportunistas. O estabelecimento de cotas raciais não pretende compensar a população negra pelos absurdos cometidos contra seus ascendentes por mais de três séculos -isso é impossível de ser compensado. As cotas são apenas uma tentativa de reconciliação do Brasil consigo mesmo, de agora para a frente.

Marcelo Trindade Miterhof, 30, mestre em economia pela Unicamp, é economista do BNDES. Foi editorialista da Folha.
@ - marcelomiterhof@uol.com.br



Texto Anterior: TENDÊNCIAS / DEBATES
Luiza Nagib Eluf: Precatórios e direitos humanos

Próximo Texto: Painel do Leitor
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.