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A fofoca Da Vinci
LUIZ FELIPE PONDÉ
O "Código Da Vinci" tem características que o tornam interessante para muita gente que é semiletrada, mas se considera crítica
IMAGINEMOS UM best-seller que
juntasse fragmentos da teoria darwinista, cacos de física quântica
barata, pitadas de ufologia mística e
uma história mal contada do povo
maia. Segundo nosso romance, há milênios, alienígenas entraram em contato com os maias.
Historiadores recentes determinaram que esse povo era agressivo, conhecedor da astronomia, canibal e,
para alguns, "espiritualmente mais
evoluído" do que nós, pois já praticavam, naquela época, o aborto como
instrumento de melhoria da qualidade de vida e de auto-estima.
Outro dado etnográfico importante
é que os maias viviam sob um matriarcado feroz, no qual os homens,
após fecundarem 2012 mulheres, tinham seu órgão sexual cortado para
que ficassem menos fálicos.
Após complexos cálculos quânticos, segue o romance, os alienígenas
decidiram usar os maias para introduzir um vírus gay na humanidade,
cujo objetivo era tornar a espécie estéril, além de, como efeito colateral,
gerar um profundo sentimento de
culpa em quem continuasse desejando o outro sexo.
As primeiras cobaias foram os próprios maias, que mergulharam numa
guerra civil entre os "libertários" e os
"conservadores", sendo esta a causa
real de sua extinção. Os alienígenas
precisavam da Terra para colonização, por isso era essencial exterminar
seus "donos".
Nosso romance se desenrolaria entre Nova York e as selvas da América
Central e teria como protagonistas
um homem e uma mulher, alguns dos
últimos espécimes heterossexuais,
que sofreriam uma perseguição cruel
de clones gays a serviço da extinção da
espécie.
Ao final, nossos heróis seriam salvos por monges beneditinos que descobriram um antídoto para o vírus,
mas que não podiam divulgá-lo, pois
governos, universidades e empresas
já atuavam sob tutela dos alienígenas
e, por isso, difamavam nossos monges
dizendo que eles eram pedófilos.
Escândalo: ongs, universidades, intelectuais e sociedades de classe se revoltariam (com razão) diante de tamanho uso absurdo de teorias científicas a serviço de preconceitos atávicos. Mas a história é boa, e alguém faz
um filme (para "sorte" de nossas vítimas difamadas, um péssimo filme,
ainda que com grandes astros). Tentariam proibir o filme? Revelariam
seu verdadeiro intento machista homofóbico? Os direitos humanos condenariam o evento?
O "Código Da Vinci" apresenta características que o tornam interessante pra muita gente semiletrada
-mas que não sabe que é semiletrada
e se considera "crítica". O livro fala
mal da Igreja Católica, e falar mal da
igreja é o único "preconceito crítico".
Apresenta a Idade Média de forma
infantil, como um período no qual se
queimavam mulheres inteligentes todos os dias (o que é idiota e falso historicamente; os comunistas devem ter
matado mais mulheres, mas o repertório semiletrado sobre a Idade Média é construído por Hollywood).
Faz brilhar a Ordem dos Templários misteriosos, esses heróis medievais dos semiletrados, especialistas
em tudo, das melhores posições no
sexo sagrado à ciência moderna, do
destino da Sra. Jesus à física quântica.
Além disso, o "Código Da Vinci"
prestaria um serviço irresistível à
causa (justa) da recuperação da imagem da mulher na história do cristianismo (o que o elevaria a categoria de
obra "libertária").
Pena que isso seja à custa do uso falso dos evangelhos gnósticos e da arqueologia bíblica (o Evangelho de
Maria Madalena ou o de Filipe nada
nos dizem sobre a "vida de Caras Da
Vinci" de Jesus e Madalena), além da
difamação direta de instituições e de
seus integrantes.
Pouco importa aqui a adesão ou não
às vítimas da fofoca Da Vinci, o fato é
que, se lembrarmos das manifestações iradas contra o filme "A Paixão
de Cristo", de Mel Gibson, podemos
perceber o que move a recepção de fenômenos como esse.
O motor da reação nada tem a ver
com a preocupação com o conhecimento ou com a história do cristianismo, mas, simplesmente, com essa coisa que disfarça sua verdadeira identidade de preconceito e que infesta a vida com o pensamento: as tolices do
multiculturalismo e as militâncias de
classes.
LUIZ FELIPE PONDÉ, 47, filósofo, é professor do programa de pós-graduação em ciências da religião, do Departamento de Teologia da PUC-SP e da Faculdade de Comunicação da FAAP. É autor de, entre outras obras, "O Homem
Insuficiente" (Edusp).
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