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CARLOS HEITOR CONY
Até a tomada do poder
RIO DE JANEIRO - O recorte do
velho jornal não trazia data nem detalhes sobre a produção de uma peça que fez sucesso ali pelos meados
dos anos 60. Não deu para identificar o autor, o diretor e os atores.
Lembro vagamente que se tratava
de um texto experimental e participante, tão participante que não deixou memória.
Não deu para entender a trama,
apenas uma cena foi comentada no
recorte que encontrei entre outros,
que me pareceram sintomáticos
daquela época em que já vivíamos
sob o regime militar.
Um estudante é repreendido pelo
pai porque deixou de freqüentar as
aulas da faculdade para se reunir
com outros jovens que avaliavam a
situação política vigente e procuravam estabelecer táticas e estratégias para a tomada do poder pelas
forças populares e progressistas.
Palavra vai, palavra vem, o bate-boca esquentou, o pai chamou o filho de vagabundo, e o filho chamou
o pai de vendido aos patrões. Era
um funcionário de um ministério
não identificado, exercia funções
humildes, carimbava papéis que já
vinham carimbados de outras instâncias e os remetia para novas instâncias, na complicada malha burocrática.
O pai argumenta que, com o salário de trabalho tão modesto, ele pode pagar os estudos do filho. O filho
cospe no chão, pergunta se o pai
não tem vergonha de trabalhar para
um governo que explora o povo. Diz
que não pode ir mais à faculdade
porque os colegas o desprezam por
ter um pai funcionário da nação.
O pai dá uma bofetada no filho,
parece ser o clímax da peça. Infelizmente, não sei como a história continua, se o filho revida a bofetada ou se decide sair de casa para nunca
mais voltar, pelo menos até que tome o poder. Com peças assim, não é
de admirar que o regime militar tenha durado tanto tempo.
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