São Paulo, domingo, 19 de agosto de 2007

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CARLOS HEITOR CONY

Até a tomada do poder

RIO DE JANEIRO - O recorte do velho jornal não trazia data nem detalhes sobre a produção de uma peça que fez sucesso ali pelos meados dos anos 60. Não deu para identificar o autor, o diretor e os atores. Lembro vagamente que se tratava de um texto experimental e participante, tão participante que não deixou memória.
Não deu para entender a trama, apenas uma cena foi comentada no recorte que encontrei entre outros, que me pareceram sintomáticos daquela época em que já vivíamos sob o regime militar.
Um estudante é repreendido pelo pai porque deixou de freqüentar as aulas da faculdade para se reunir com outros jovens que avaliavam a situação política vigente e procuravam estabelecer táticas e estratégias para a tomada do poder pelas forças populares e progressistas.
Palavra vai, palavra vem, o bate-boca esquentou, o pai chamou o filho de vagabundo, e o filho chamou o pai de vendido aos patrões. Era um funcionário de um ministério não identificado, exercia funções humildes, carimbava papéis que já vinham carimbados de outras instâncias e os remetia para novas instâncias, na complicada malha burocrática.
O pai argumenta que, com o salário de trabalho tão modesto, ele pode pagar os estudos do filho. O filho cospe no chão, pergunta se o pai não tem vergonha de trabalhar para um governo que explora o povo. Diz que não pode ir mais à faculdade porque os colegas o desprezam por ter um pai funcionário da nação.
O pai dá uma bofetada no filho, parece ser o clímax da peça. Infelizmente, não sei como a história continua, se o filho revida a bofetada ou se decide sair de casa para nunca mais voltar, pelo menos até que tome o poder. Com peças assim, não é de admirar que o regime militar tenha durado tanto tempo.


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