São Paulo, Terça-feira, 19 de Outubro de 1999
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Obrigação facultativa

CARLOS HEITOR CONY

Rio de Janeiro - Minha descrença no mundo em geral, e no Brasil em particular, nasceu na manhã em que encontrei o pai fazendo uns consertos, consertos que nunca terminavam, pois exigiam outros que igualmente nunca ficavam prontos.
Eu tinha planos para aquele dia. Com uns meninos da vizinhança, estávamos fazendo um túnel para fugirmos no caso de uma guerra ou de outra qualquer catástrofe equivalente. A presença do pai no quintal me atrapalharia. Por que ele não fora trabalhar?
Como quem não quer nada, perguntei-lhe isso. E ele, que estava desmontando uma torneira que nunca tinha água, respondeu: ""Hoje é ponto facultativo".
Ressabiado, sem saber o que isso significava, fiquei anos ignorando o que era ponto facultativo. Bem mais tarde, indo para o jornal em que trabalhava, notei a cidade deserta e procurei saber o que estava acontecendo. Ou melhor, o que não estava acontecendo.
Informaram-me que era dia de ponto facultativo. Trabalhava quem quisesse. E como ninguém queria, ninguém trabalhava -com exceção dos motorneiros de bonde, dos motoristas de ônibus e dos jornalistas em início de carreira.
Só mesmo o Brasil para inventar uma obrigação facultativa. E ainda rimos dos portugueses que inventam coisas parecidas. Há aquela piada, o pai que ameaçava o filho: ""Queiras ou não queiras, meu filho, serás bombeiro voluntário!".
Penso nisso, na piada do português e no ponto facultativo do pai, ao ver a embrulhada em que se meteu o Ciro Gomes com o Imposto de Renda. Trata-se de imposto declaratório, cada um declara o que quer, voluntariamente, sendo facultativo mencionar essa ou aquela renda.
Aos poucos, o próprio Imposto de Renda parece que está ficando descartável. A menos que seja descontado na fonte ou na folha de pagamento, torna-se uma obrigação facultativa. Daí a idéia de FHC taxar na fonte os inativos. Quanto mais pobre o contribuinte, menos facultativo será o seu imposto.


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