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CLÓVIS ROSSI
O negro e o pedestre
SÃO PAULO - Fui quase a vida toda como 90% (ou mais?) dos motoristas brasileiros. Via no pedestre
um estorvo a ser ultrapassado, jamais um ser com direitos até maiores, por estar "desarmado".
Só depois de dirigir umas quantas
vezes na Europa, comecei a mudar
(menos do que deveria, mas mudar,
de todo modo). Lá, o rei é o pedestre. E o é menos por coerção legal
ou policial e mais por imposição social. Lá, o motorista corre o risco de
ser linchado (no mínimo, no mínimo, com um olhar, um palavrão ou
um gesto tão eloqüente que dispensa palavras) se desrespeitar o direito de o pedestre cruzar primeiro a
rua. Aqui, é o pedestre que corre o
risco de ser atropelado se desafiar o
motorizado.
Depois de dirigir na Europa, pavloviano como sou, passei a aplicar
aqui as regras de lá. O resultado é
absurdamente surpreendente: cansei de receber mesuras exageradas
de agradecimento, sempre que deixava um pedestre cruzar tranqüilamente a rua.
Fica claro que o pedestre brasileiro acha que eu estou fazendo um favor a ele, em vez de estar simplesmente respeitando um direito dele.
Afinal, a faixa é "de pedestre", não
de motorista, certo?
Dá a nítida sensação de que a
coerção social, aqui, é a inversa:
quem pode faz o que bem entende;
quem não pode agradece quando o
que pode faz o que deveria ser obrigação básica de civilidade. O direito
vira concessão.
Conto tudo isso porque desconfio
que é essa inversão a responsável,
ao menos em parte, pela constatação feita na manchete de ontem
desta Folha, segundo a qual a distância salarial entre brancos e negros é tanto maior quanto maior o
nível de escolarização.
Ou seja, a "elite branca e má"
(conforme Cláudio Lembo) atropela o "pedestre" até quando ele trafega na sua faixa (de escolaridade).
Mais que preconceito, são vícios
culturais arraigados.
crossi@uol.com.br
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