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CLÓVIS ROSSI
O edredon e o cobertor
SÃO PAULO - Baixos do Minhocão, centro de São Paulo, pouco antes de
13 horas de ontem. Um grupo de
crianças montou sua, digamos, casa
na ilha que divide as duas pistas da
rua Amaral Gurgel.
Não tem câmeras de TV em volta,
mas tem a versão pobre do edredon
da "Casa dos Artistas". É um velho
cobertor de flanela, até excessivo para
o calor da época e da hora.
Sob o cobertor, um casal troca beijos, mais moleques que sensuais. Ela
tem cabelos próximos do encaracolado, mas não é loira como a Bárbara.
Seus cabelos são marrom-sujeira, enfeitando um rosto de criança de 14
anos, no máximo 15.
Ele tampouco é loiro nem tem os cabelos pintados como Supla. Ao contrário, é cabelo carapinha mesmo. De
costas para o carro de onde assisto a
versão pobre e suja da "Casa dos Artistas", fica difícil ver-lhe o rosto, mas
dá para adivinhar que está entre
criança e adolescente.
Dorso nu, abraça a menina e só interrompe o beijo para cumprimentar
duas mulheres que passam pela, digamos, casa.
Pena que, ao contrário da casa do
Morumbi, esta não tem som. Não me
permite saber o que ele e ela pensam
ou dizem um para o outro.
Não são famosos. Provavelmente
nunca serão. Talvez sejam como Ayodele, o bebê nascido no Zimbábue no
exato momento em que, em Nova
York, se realizava a Cúpula Mundial
pela Criança, em setembro de 1990.
Líderes mundiais fizeram então mil
promessas para melhorar a vida das
crianças.
O relatório sobre a situação mundial da infância, recém-editado pelo
Unicef, diz: "Ayodele está agora com
quase 11 anos e, embora não saiba,
ela foi traída. Sua vida hoje é praticamente a mesma que uma menina de
sua idade levava em 1990".
Mas quem se importa com as e os
Ayodeles da vida se pode espiar o
edredon limpo da "Casa dos Artistas"
em vez do cobertor sujo dos baixos do
Minhocão?
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