São Paulo, quinta, 20 de março de 1997.

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Sonho macabro

CARLOS HEITOR CONY
Rio de Janeiro - Sonhou que a ex-mulher o convidara para um fim-de-semana na casa dos pais dela, em Angra dos Reis. Tudo estava como antigamente, todos estavam lá, o velho Macedo com seus cabelos brancos e seus olhos azuis, a sogra com seu silêncio e seus olhos cinzas, os cunhados, os empregados todos. Na garagem, os carros da família, o Buick 1950, o Studebaker 1951, o Cadillac 1955. Ele teve de deixar o seu Golf 1997 no jardim.
No início, tudo correu civilizadamente. A ex-mulher mostrou-lhe o quarto de hóspedes, que por coincidência era o quarto em que eles haviam passado a última noite do casamento. Ele estava cansado, abriu a janela que dava para o mar e tentou adormecer.
Já estava quase dormindo quando ouviu as vozes que anunciavam o jantar. Jantava-se cedo naquela casa. Ele se dirigiu para a sala onde todos estavam reunidos. A partir dali, começaram coisas estranhas. O ex-sogro estava enfaixado como uma múmia, somente os cabelos brancos e os olhos azuis para fora. Perguntou como aquilo acontecera e o sogro respondeu: ``Estava lavando as mãos, não vê?''. E mostrou as duas mãos descarnadas, as mãos dos mortos.
Só então reparou que todos ali sabiam que estavam mortos, a ex-mulher, os sogros, os cunhados, até a copeira que era passista na Mangueira e quando bebia ficava dando em cima dele.
Ele sobrevivera, sobrara daquele mundo que durante anos fora o seu. Caíra numa cilada, fora convocado a uma reunião de mortos, mortos que lhe pediam contas por continuar imerecidamente vivo -uma conta que, ao contrário de outras, ele achava que não tinha contraído.
De repente, até os carros entraram em decomposição. Sobrou apenas seu Golf do ano, que começou a andar sozinho, deixando-o onde ele deveria ficar: no meio daqueles mortos todos. (Trecho de ``A Casa do Poeta Trágico'', romance eternamente em preparo)

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice


Copyright 1997 Empresa Folha da Manhã