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Sonho macabro
CARLOS HEITOR CONY
Rio de Janeiro - Sonhou que a
ex-mulher o convidara para um
fim-de-semana na casa dos pais dela,
em Angra dos Reis. Tudo estava como
antigamente, todos estavam lá, o velho Macedo com seus cabelos brancos
e seus olhos azuis, a sogra com seu silêncio e seus olhos cinzas, os cunhados, os empregados todos. Na garagem, os carros da família, o Buick
1950, o Studebaker 1951, o Cadillac
1955. Ele teve de deixar o seu Golf 1997
no jardim.
No início, tudo correu civilizadamente. A ex-mulher mostrou-lhe o
quarto de hóspedes, que por coincidência era o quarto em que eles haviam passado a última noite do casamento. Ele estava cansado, abriu a janela que dava para o mar e tentou
adormecer.
Já estava quase dormindo quando
ouviu as vozes que anunciavam o jantar. Jantava-se cedo naquela casa. Ele
se dirigiu para a sala onde todos estavam reunidos. A partir dali, começaram coisas estranhas. O ex-sogro estava enfaixado como uma múmia, somente os cabelos brancos e os olhos
azuis para fora. Perguntou como
aquilo acontecera e o sogro respondeu: ``Estava lavando as mãos, não
vê?''. E mostrou as duas mãos descarnadas, as mãos dos mortos.
Só então reparou que todos ali sabiam que estavam mortos, a ex-mulher, os sogros, os cunhados, até a copeira que era passista na Mangueira e
quando bebia ficava dando em cima
dele.
Ele sobrevivera, sobrara daquele
mundo que durante anos fora o seu.
Caíra numa cilada, fora convocado a
uma reunião de mortos, mortos que
lhe pediam contas por continuar imerecidamente vivo -uma conta que,
ao contrário de outras, ele achava que
não tinha contraído.
De repente, até os carros entraram
em decomposição. Sobrou apenas seu
Golf do ano, que começou a andar sozinho, deixando-o onde ele deveria ficar: no meio daqueles mortos todos.
(Trecho de ``A Casa do Poeta Trágico'', romance eternamente em preparo)
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