São Paulo, quarta-feira, 20 de março de 2002

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TENDÊNCIAS/DEBATES

Erradicação da dengue

MARIA DA GLÓRIA TEIXEIRA e MAURÍCIO BARRETO

Os desafios atuais para a prevenção das infecções causadas pelos quatro sorotipos do vírus da dengue (DEN 1, DEN 2, DEN 3 e DEN 4) são complexos, devido à força da sua circulação, à inexistência de vacinas ou drogas eficazes e, particularmente, porque as medidas de prevenção disponíveis, direcionadas para a eliminação do seu transmissor, o Aedes aegypti, vêm se mostrando inefetivas. Os acontecimentos atuais somente poderiam ter sido evitados se ações contínuas e sustentadas tivessem sido implementadas com a devida antecedência.
O Brasil já esteve livre desse vetor durante anos. Se medidas tivessem sido tomadas no momento da sua reintrodução no país, em 1976, possivelmente não estaríamos hoje diante de epidemias de tamanha gravidade. No entanto, naquele momento, o governo ditatorial tratou a questão às escondidas, pois a considerou de "segurança nacional". A partir de então, erros no processo de decisão e ação governamental foram se acumulando, o que resultou no crescimento da dispersão dos mosquitos e de epidemias recorrentes de dengue (ver gráfico), tornando-se inviável a sua eliminação.
A intensa circulação do DEN 1 e do DEN 2, nos últimos 17 anos, fez com que parcelas significativas da população tivessem sido infectadas com algum desses sorotipos. No momento em que nos expomos a outros sorotipos, a presença desses anticorpos aumenta o risco para o desenvolvimento das formas severas da dengue. Isso está acontecendo com a introdução recente do sorotipo DEN 3.
Somente em 1995 esse problema teve uma atenção à altura da sua seriedade. A iniciativa coube ao CNS (Conselho Nacional de Saúde), que nomeou uma comissão visando elaborar propostas sobre as formas de evitar epidemias mais severas. Essa iniciativa resultou na elaboração do Plano Diretor de Erradicação do Aedes aegypti (PEA), o qual foi imediatamente acolhido pelo então ministro da Saúde, o dr. Adib Jatene.
Desde o início da elaboração do PEA, especialistas envolvidos no processo entenderam que a solução desejada impunha ações que ultrapassassem o combate químico ao mosquito, passando por propostas mais abrangentes sobre os determinantes da existência e da proliferação desse vetor nas cidades.
Estudos científicos já demonstravam que seria necessária uma estratégia radical de combate ao Aedes aegypti, pois as estratégias de controle não vinham dando resultados. Propôs-se, então, a erradicação visando atingir níveis de infestação pelo Aedes aegypti incompatíveis com a circulação do vírus. Era igualmente importante que a mesma estivesse inserida no processo de descentralização das ações de saúde preconizado pelo SUS e, assim, consonante com os direitos individuais e coletivos, fugisse da tradição verticalista e autoritária dos programas de controle de doenças.
A comissão não se deteve diante de opiniões simplistas e de caráter tecnocrático de alguns, que se apegavam ao suposto uso "indevido" da palavra erradicação. Entendeu-se que, naquele momento, essa seria a única estratégia capaz de prevenir as epidemias anunciadas de dengue e impedir a reurbanização da febre amarela. Esperava-se que, durante sua implantação, as insuficiências e dificuldades fossem superadas pelo acréscimo de novos conhecimentos.
Assim, como etapa inicial, propunha-se o desenvolvimento de dois projetos-piloto (em Salvador, disponível no site www.isc.ufba.br, e em Goiânia), que iriam ampliando a base de conhecimento científico e tecnológico necessária ao aprimoramento do plano. Esses projetos foram também elaborados; porém, como o próprio PEA, nunca foram implementados. O "Programa de Erradicação" que vem sendo executado desde 1997 não incorporou os princípios e diretrizes técnicos e políticos do PEA, centrando-se quase que exclusivamente no combate químico ao mosquito.
Três pilares fundamentais foram considerados indispensáveis ao PEA: saneamento ambiental, comunicação e mobilização social e, complementarmente, combate direto ao vetor. A sua formulação explicitava uma clara direção político-organizacional: para o desenvolvimento das ações fazia-se necessária a mobilização da sociedade, a construção de um pacto intergovernamental e a coordenação intersetorial nos três níveis de governo. Além disso, estabelecia os princípios de universalidade, continuidade e sincronicidade das atividades de saneamento, mobilização social e combate direto ao vetor.
O desenho desse plano constituía-se em um desafio, em uma nova forma de atuação da saúde pública no controle de doenças. Do ponto de vista técnico, era inovador por considerar a questão da determinação da doença em toda a sua amplitude, incluindo sua base socioambiental e cultural. Do ponto de vista político, foi um plano nascido fora da burocracia estatal, no interior de uma instância da sociedade, o CNS.
As críticas ao plano até hoje centram-se nos seus custos (R$ 4,5 bilhões para quatro anos). Porém nunca se procurou entender que muitas das ações propostas já estavam sendo efetuadas, de forma descoordenada, em vários níveis e setores do governo e que os recursos da CPMF deveriam ser inteiramente destinados à saúde. Motivo de maior perplexidade ainda é constatar que só o dinheiro gasto (ou melhor, desperdiçado) com as atividades de controle da dengue desde a elaboração do PEA já ultrapassa mais da metade do orçamento previsto para esse plano. Com a epidemia em curso, é fundamental que não nos deixemos enganar. A redução da epidemia a cada ano, ao final do primeiro semestre, tem se dado muito mais devido à ação da natureza (mudança das estações) do que à dos homens.
Neste momento, em que o país vive tão grave epidemia de dengue, é da maior importância que profissionais e serviços de saúde empreendam esforços para prestar uma assistência de qualidade à população, mediante o diagnóstico precoce e o tratamento adequado dos acometidos, para assim, pelo menos, evitarmos as mortes, já que as opções de governos e tecnocratas nos tornaram incompetentes para evitar a ocorrência da doença.


Maria da Glória Teixeira, 51, médica infectologista, é professora-adjunta do Instituto de Saúde Coletiva da Universidade Federal da Bahia. Maurício Barreto, 47, médico é professor titular do Instituto de Saúde Coletiva da Universidade Federal da Bahia.



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