São Paulo, sábado, 20 de março de 2004

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MARCOS AUGUSTO GONÇALVES

Esqueçam o que eu bebi

SÃO PAULO - Bem que tentei, mas não resisti à tentação de ver no "affair" Zeca Pagodinho um desses episódios que se revestem de dimensão simbólica em relação ao momento por que passa o país, suas instituições e seus governantes.
Temos um sambista genuinamente popular no papel de defensor publicitário de uma "nova" cerveja. Mesmo sabendo-se que as cervejas desse tipo são todas praticamente idênticas, ele empresta sua credibilidade à marca renovada. Está, à sua maneira, dentro das convenções do mundo da propaganda, afiançando que a mudança é boa e deve ser adotada.
Passa-se o tempo, e eis que o arauto do novo sabor abandona seus seguidores. Pasmo. Revolta. "O que é isso, Pagodinho?", perguntam os companheiros aflitos, já intuindo que a ética nesse negócio é muito relativa.
A mensagem é clara: por um punhado de dinheiro (e US$ 3 milhões é uma boa gaita), dá para mudar. E a mudança, afinal, não é só por dinheiro: Pagodinho sempre bebeu a velha, e não a nova. É verdade que, ao que consta, ele parou de beber. Mas tanto faz. Façam o que eu digo, não façam o que eu faço. As contradições se dissolvem na espuma. São diluídas pela encenação marqueteira. Era só uma bravata. Um amor de verão. Não era para acreditar. Esqueçam o que eu bebi.
Pagodinho foi um dos cabos eleitorais do presidente Luiz Inácio Lula da Silva na eleição presidencial. Ou seja, anunciou o candidato da mudança, o novo sabor da política nacional. O cantor e compositor esteve recentemente num animado churrasco promovido pelo Planalto para seus colaboradores, às vésperas da reforma ministerial. Não foi informada a marca da cerveja servida.
Nesta semana, vi-me incluído numa lista de e-mail na qual pessoas discutem o momentoso caso. A toda hora alguém pergunta se ele foi honesto ou não. Afinal, o volúvel Pagodinho traiu ou não traiu? Fez bem ou fez mal? Dilema moral. Drama de consciência. Dúvida cruel.
Que dureza. Dá pra tomar uma Kaiser antes?


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