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Estado laico é neutro
ALDIR GUEDES SORIANO
Como se pode perceber, os dois extremos devem ser evitados. Por isso, é melhor que
o Estado seja neutro
O
ESTADO laico não é ateu e pagão, como bem observam Ives
Gandra da Silva Martins e Antonio Carlos Rodrigues do Amaral,
em artigo publicado nesta Folha
("Tendências/Debates", 14/6). Porém, não se pode olvidar que o Estado
laico também não é confessional. O
Estado ateu possui um caráter confessional às avessas. Assim, o Estado
laico não é ateu nem muito menos
confessional: ele é neutro -ou, pelo
menos, deveria, em tese, ser neutro.
Não há dúvida de que o Estado ateu
e hostil às religiões pode ser inimigo
das liberdades individuais, principalmente em relação às liberdades de
crença, consciência e culto. A própria
Revolução Francesa levou, num primeiro momento, a uma série de desatinos contra os religiosos da época.
Felizmente essa fase foi superada e a
revolução acabou por contribuir para
a idéia da separação entre o Estado e
as confissões religiosas.
Cumpre observar que o Estado
confessional também é capaz de cometer graves desatinos e atrocidades.
Os horrores das "santas inquisições"
só foram possíveis com a associação
entre a igreja e o Estado, quando a heresia passou a ser considerada um
crime contra o próprio Estado.
Como se pode perceber, os dois extremos devem ser evitados. Por isso, é
melhor que o Estado seja neutro.
Sempre que o Estado tentou definir o
que é o bem comum por meio de leis,
ocorreram graves confrontos, barbáries, genocídios e guerras.
Foi exatamente o que ocorreu com
a experiência totalitarista nazista,
que foi imposta por Hitler a partir da
edição das leis de Nuremberg de
1935. O mesmo aconteceu quando os
reis católicos Fernando e Isabel solicitaram ao papa a instituição da inquisição espanhola. Os monarcas elegeram o catolicismo como o bem comum e pretenderam a unificação política e religiosa por meio da eliminação das minorias religiosas. Assim,
positivando o bem comum, ateu ou
religioso, o Estado se torna instrumento da tirania e da opressão.
Por essas razões históricas é que o
ordenamento estatal não pode ser rígido. Não se pode positivar o que vem
a ser o bem comum na sua plenitude.
Daí advém em parte o valor dos princípios constitucionais -tais como o
princípio da dignidade da pessoa humana-, aparentemente vagos e imprecisos, mas que podem ser extremante úteis na resolução de problemas jurídicos. Os valores religiosos
não devem ser confundidos com o
bem comum adotado pelo Estado.
O Estado laico e neutro é um legado
do pensamento liberal, que se desenvolveu a partir do século 18. A democracia constitucional, ao adotar o liberalismo político, permite a convivência pacífica das diversas confissões religiosas existentes na sociedade, sem excluir os ateus (vide John
Rawls). Assim, a liberdade religiosa
alcança tanto crentes quanto descrentes (art. 5º, VI, da Constituição).
Embora o preâmbulo da Constituição diga "sob a proteção de Deus", o
Brasil ainda é um Estado laico por
força do art. 19, I, do mesmo documento legal. O máximo que se pode
dizer é que os constituintes promulgaram uma Constituição laica e pluralista sob a proteção de Deus.
É interessante notar que o pai do liberalismo, o inglês John Locke
(1632-1704), desenvolveu suas idéias
de separação entre igreja e Estado e
de autonomia individual alicerçado
no livre-arbítrio extraído da Bíblia.
É evidente que, diante da ampla liberdade de expressão, o Estado democrático "não pode ser surdo à religiosidade de seus cidadãos", como
observam os juristas supracitados,
mas também não deve ser indiferente
à ética humanista dos ateus.
Ambas as correntes são capazes de
influenciar, mesmo quando a religiosidade é convenientemente afastada
da esfera pública. Isso porque, na esteira dos filósofos Gadamer e Ortega
y Gasset, os agentes estatais, pessoas
de carne e osso, dificilmente deixarão
de carrear suas pré-compreensões
religiosas para a esfera pública.
Contudo, é importante manter a
religião como assunto essencialmente privado, que deve ficar restrito à família e às organizações religiosas. Como? Impedindo que argumentos religiosos sejam diretamente considerados nas atividades estatais legislativas, administrativas e jurisdicionais.
ALDIR GUEDES SORIANO, advogado, é membro da Comissão de Direito e Liberdade Religiosa da OAB-SP (seccional paulista da Ordem dos Advogados do Brasil) e autor
do livro "Liberdade Religiosa no Direito Constitucional e
Internacional"
www.aldirsoriano.com.br
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