São Paulo, quarta-feira, 20 de outubro de 2004

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CLÓVIS ROSSI

Fantasmas

LISBOA - Junto com as fotos supostamente de Vladimir Herzog, morto sob tortura em dependências do Exército em São Paulo, faz quase 30 anos, outro fantasma é posto a circular na forma de uma mentalidade equivocada e perigosa.
Refiro-me ao trecho da nota oficial do Exército em que se afirma que "as medidas tomadas pelas Forças Legais foram uma legítima resposta à violência dos que recusaram o diálogo, optaram pelo radicalismo e pela ilegalidade e tomaram a iniciativa de pegar em armas e desencadear ações criminosas".
Não é bem assim. Que um governo mate em combate quem pretenda derrubá-lo pode-se até aceitar como legítimo, ainda que o governo não tivesse legitimidade de origem.
Mas o que aconteceu no Brasil, nos anos de chumbo, foi muito além de combates entre dois grupos que pretendiam, um, manter o poder, o outro, conquistá-lo. Matar e morrer é decorrência dessa situação. Lamenta-se, mas entende-se.
O que não é legítimo é torturar e matar prisioneiros como Vladimir Herzog. Nem importa, no caso, que não haja prova alguma de que ele "pegou em armas e desencadeou ações criminosas". Ainda que o tivesse feito, depois de detido, o Estado e suas instituições teriam, ao contrário, que zelar pela sua integridade em vez de destruí-lo.
A sobrevivência dessa mentalidade de legitimação do ilegítimo é tanto mais triste quando se sabe que foi justamente na institucionalização da democracia que o país mais avançou nos últimos anos.
Há até analistas ilustres que, apesar do marasmo econômico e do escasso avanço social, rejeitam o rótulo de "décadas perdidas" para as duas últimas, justamente porque o país ganhou em democracia.
O fantasma da instabilidade institucional e da anarquia militar, tão bem retratado nos livros do jornalista Elio Gaspari, está fora de moda. Caberia ao próprio Exército dar-lhe enterro digno, e não exumá-lo.


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