São Paulo, quinta-feira, 20 de dezembro de 2007

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De quem é o SUS?

OCTÁVIO LUIZ MOTTA FERRAZ

A interpretação inadequada dos princípios do SUS pode gerar um sentimento negativo de que o direito à saúde é promessa utópica

O SUS (Sistema Único de Saúde), previsto na Constituição de 1988 e implementado por meio da lei 8.080 de 1990, é a principal política pública com vista à garantia do direito constitucional à saúde.
Entre seus princípios regentes previstos na Constituição e repetidos na lei, destacam-se o "acesso universal e igualitário" e o "atendimento integral". O observador apressado poderia concluir que são princípios contraditórios e, portanto, impossíveis de serem realizados concomitantemente. "Ora, se o acesso é universal e igualitário, não dá para garantir atendimento integral. Se o atendimento tem que ser integral, é impossível atender a todos!"
Tal conclusão é, à primeira vista, bastante lógica. Como os recursos do SUS -e de qualquer sistema de saúde do mundo, é bom lembrar- são limitados, exigem, inevitavelmente, restrições, seja no lado da oferta (atendimento), seja no lado da demanda (acesso), freqüentemente em ambos.
Nos Estados Unidos, o bastante criticado sistema público, muito reduzido, atende apenas aos indigentes (Medicaid) e aos idosos (Medicare).
Não se trata, portanto, de um sistema universal. Já no Reino Unido, o sistema atende a todos (ou seja, é universal), mas, apesar de garantir uma excelente cobertura, melhor que a de todos os planos de saúde privados, não garante atendimento ilimitado.
Voltando aos princípios do SUS, devemos então concluir, como algumas pessoas o fazem, que são realmente contraditórios? A resposta é negativa.
A conclusão "é contraditório" se apóia aqui em entendimento literal, inadequado da norma constitucional.
A expressão "atendimento integral" deve ser interpretada à luz do conceito de integralidade em saúde que a inspirou, um conceito técnico, muito mais complexo e rico do que o estrito sentido literal da palavra.
Remonta ao movimento da "medicina integral" surgido nos Estados Unidos e que, no Brasil, assumiu contornos bastante particulares ao ser encampado pelo movimento sanitarista que influenciou fortemente a constitucionalização do direito à saúde na década de 1980.
Integralidade em saúde compreende três ideais inter-relacionados: enxergar o paciente como um todo, e não apenas como portador de uma doença específica; integrar ações preventivas com ações curativas; e integrar todos os níveis operacionais de atenção à saúde (primário, secundário e terciário). É mais próximo do significado de integração, portanto, que de integralidade.
Essa interpretação inadequada não é inócua. Pode gerar um sentimento negativo de que o direito à saúde não passa de promessa utópica, irrealizável. Pode levar ainda à erosão dos princípios de universalidade e igualdade que a Constituição encampou e que fazem do SUS uma das políticas públicas mais importantes na construção de uma sociedade menos estratificada. Esses riscos já são visíveis e preocupantes.
É crescente, por exemplo, o número de decisões judiciais que ordenam ao Estado pagar tratamentos e medicamentos não cobertos pelo SUS, muitas vezes caríssimos, com apoio naquela interpretação literal. Segundo estimativa do Ministério da Saúde, serão gastos R$ 500 milhões com essas ações só neste ano.
Como o acesso ao Judiciário não é igualitário (pessoas de maior renda e educação o acessam com mais facilidade), há uma inevitável transferência de recursos de serviços que deveriam atender a todos em condições de igualdade para garantir "integralidade" a apenas alguns. Parafraseando Orwell: todos têm igual direito a tratamento integral, mas alguns (os que têm acesso à Justiça) são mais iguais que outros.
Há já quem defenda, por causa disso, que o acesso ao SUS seja restrito por lei aos mais pobres (a "focalização" do SUS). A interpretação equivocada da integralidade resulta, assim, numa perniciosa guerra pelos recursos escassos do SUS.
Países como o Reino Unido, que optaram pelo caminho da saúde pública e universal, compreenderam bem os valores dessa opção: maior coesão social (todos, independentemente da condição econômica, compartilham os mesmos serviços), o que evita ainda a estigmatização e a queda de qualidade que necessariamente acompanham os serviços públicos destinados exclusivamente aos mais pobres.
A sociedade brasileira fez essa mesma opção com a Constituição de 1988, determinando que o SUS é de todos. É preciso agora fazer valer essa opção, incentivando (e não o contrário) os mais ricos a utilizar o SUS pela porta da frente, e não pela via judicial. Esse é o caminho mais curto para um serviço público de saúde de qualidade.


OCTÁVIO LUIZ MOTTA FERRAZ, 36, mestre em direito pela USP e doutor em direito pela Universidade de Londres, é professor de direito na Universidade de Warwick (Reino Unido). Foi assessor sênior de pesquisa do relator especial da ONU para o direito à saúde (2006).

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