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De quem é o SUS?
OCTÁVIO LUIZ MOTTA FERRAZ
A interpretação inadequada dos princípios do SUS pode gerar um sentimento negativo de que o direito à saúde é promessa utópica
O SUS (Sistema Único de Saúde),
previsto na Constituição de
1988 e implementado por
meio da lei 8.080 de 1990, é a principal política pública com vista à garantia do direito constitucional à saúde.
Entre seus princípios regentes previstos na Constituição e repetidos na
lei, destacam-se o "acesso universal e
igualitário" e o "atendimento integral". O observador apressado poderia concluir que são princípios contraditórios e, portanto, impossíveis
de serem realizados concomitantemente. "Ora, se o acesso é universal e
igualitário, não dá para garantir atendimento integral. Se o atendimento
tem que ser integral, é impossível
atender a todos!"
Tal conclusão é, à primeira vista,
bastante lógica. Como os recursos do
SUS -e de qualquer sistema de saúde
do mundo, é bom lembrar- são limitados, exigem, inevitavelmente, restrições, seja no lado da oferta (atendimento), seja no lado da demanda
(acesso), freqüentemente em ambos.
Nos Estados Unidos, o bastante criticado sistema público, muito reduzido, atende apenas aos indigentes
(Medicaid) e aos idosos (Medicare).
Não se trata, portanto, de um sistema
universal. Já no Reino Unido, o sistema atende a todos (ou seja, é universal), mas, apesar de garantir uma excelente cobertura, melhor que a de todos os planos de saúde privados, não
garante atendimento ilimitado.
Voltando aos princípios do SUS, devemos então concluir, como algumas
pessoas o fazem, que são realmente
contraditórios? A resposta é negativa.
A conclusão "é contraditório" se
apóia aqui em entendimento literal,
inadequado da norma constitucional.
A expressão "atendimento integral" deve ser interpretada à luz do
conceito de integralidade em saúde
que a inspirou, um conceito técnico,
muito mais complexo e rico do que o
estrito sentido literal da palavra.
Remonta ao movimento da "medicina integral" surgido nos Estados
Unidos e que, no Brasil, assumiu contornos bastante particulares ao ser
encampado pelo movimento sanitarista que influenciou fortemente a
constitucionalização do direito à saúde na década de 1980.
Integralidade em saúde compreende três ideais inter-relacionados: enxergar o paciente como um todo, e
não apenas como portador de uma
doença específica; integrar ações preventivas com ações curativas; e integrar todos os níveis operacionais de
atenção à saúde (primário, secundário e terciário). É mais próximo do
significado de integração, portanto,
que de integralidade.
Essa interpretação inadequada não
é inócua. Pode gerar um sentimento
negativo de que o direito à saúde não
passa de promessa utópica, irrealizável. Pode levar ainda à erosão dos
princípios de universalidade e igualdade que a Constituição encampou e
que fazem do SUS uma das políticas
públicas mais importantes na construção de uma sociedade menos estratificada. Esses riscos já são visíveis
e preocupantes.
É crescente, por exemplo, o número de decisões judiciais que ordenam
ao Estado pagar tratamentos e medicamentos não cobertos pelo SUS,
muitas vezes caríssimos, com apoio
naquela interpretação literal. Segundo estimativa do Ministério da Saúde,
serão gastos R$ 500 milhões com essas ações só neste ano.
Como o acesso ao Judiciário não é
igualitário (pessoas de maior renda e
educação o acessam com mais facilidade), há uma inevitável transferência de recursos de serviços que deveriam atender a todos em condições de
igualdade para garantir "integralidade" a apenas alguns. Parafraseando
Orwell: todos têm igual direito a tratamento integral, mas alguns (os que
têm acesso à Justiça) são mais iguais
que outros.
Há já quem defenda, por causa disso, que o acesso ao SUS seja restrito
por lei aos mais pobres (a "focalização" do SUS).
A interpretação equivocada da integralidade resulta, assim, numa perniciosa guerra pelos recursos escassos do SUS.
Países como o Reino Unido, que optaram pelo caminho da saúde pública
e universal, compreenderam bem os
valores dessa opção: maior coesão social (todos, independentemente da
condição econômica, compartilham
os mesmos serviços), o que evita ainda a estigmatização e a queda de qualidade que necessariamente acompanham os serviços públicos destinados
exclusivamente aos mais pobres.
A sociedade brasileira fez essa mesma opção com a Constituição de 1988,
determinando que o SUS é de todos. É
preciso agora fazer valer essa opção,
incentivando (e não o contrário) os
mais ricos a utilizar o SUS pela porta
da frente, e não pela via judicial. Esse
é o caminho mais curto para um serviço público de saúde de qualidade.
OCTÁVIO LUIZ MOTTA FERRAZ, 36, mestre em direito
pela USP e doutor em direito pela Universidade de Londres, é professor de direito na Universidade de Warwick
(Reino Unido). Foi assessor sênior de pesquisa do relator
especial da ONU para o direito à saúde (2006).
Os artigos publicados com assinatura não traduzem a opinião do jornal. Sua publicação obedece ao propósito de estimular o debate dos problemas brasileiros e mundiais e de refletir as diversas tendências do pensamento contemporâneo. debates@uol.com.br
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