São Paulo, domingo, 20 de dezembro de 1998 |
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice "Bagdá Café"
Enquanto isso, o governo do Brasil apressa-se em apoiar um ataque ilegal e vergonhosamente oportunista. Em Bagdá, Saddam Hussein agradece ao seu Deus: é a insanidade do Ocidente que o mantém no poder. Desde que o Conselho de Segurança da ONU impôs sanções ao Iraque (consequência da invasão do Kuait, em agosto de 1990), a questão iraquiana jamais ausentou-se de sua pauta. Em outubro de 1997, a ONU criou um birô especial para tratar do cumprimento de suas resoluções sobre o Iraque, que atua ao lado da comissão especial encarregada do desarmamento (Unscom). A leitura atenta das resoluções denota uma preocupação do conselho quanto ao comportamento do governo iraquiano, mas afasta completamente o argumento dos EUA de que existiria um permissivo para a ação militar. Ao contrário: da análise das decisões sobressai a manipulação grosseira do trabalho da Unscom pelo seu chefe, o australiano Richard Butler, visivelmente a serviço da causa dos EUA, seja ela qual for. Após retirar os membros da comissão do território iraquiano sem prévia consulta à ONU e criar um fato político com a tentativa (no mínimo, patética) de inspecionar a sede do partido político de Saddam, Butler redigiu pessoalmente, sem a aprovação de seus principais conselheiros, o relatório que fundamenta a ofensiva militar. Conforme esse texto insosso, o Iraque não teria oferecido uma "cooperação plena e inteira" aos inspetores. Curiosamente, o relatório da Agência Internacional de Energia Atômica, publicado no mesmo dia, reconheceu "o necessário nível de cooperação" das autoridades iraquianas. De todo modo, a solução da crise iraquiana não poderia vir do Conselho de Segurança, prisioneiro de sua própria estrutura. Os EUA nele dispõem de poder de veto e podem sustentar "ad aeternum" as sanções contra o Iraque. Ora, Saddam tem consciência de que, sendo cooperativo ou renitente, não há o mínimo sinal de que as sanções venham a ser suspensas. O ataque anglo-americano constitui um ilícito nas relações entre Estados. Tratando-se de ataque armado, já foi condenado por um pacto (o Briand-Kellog, de 1928) e se tornou ilegal com a adoção da Carta de San Francisco (1945), que condiciona o uso da força à hipótese de legítima defesa. Mas esse ataque não deverá, "de modo algum, atingir a autoridade e a responsabilidade" do conselho (art. 51). Há a concreta agressão americana e a jamais provada abstração pela qual o Iraque teria um devastador poderio bélico. Essa desproporção afasta de todo a hipótese de legítima defesa. Além disso, a dupla Clinton-Blair coloca o conselho ante um doloroso fato consumado, em que se expressa a lei do mais forte. Logo, seus mísseis atingiram também a credibilidade do sistema de manutenção da paz e da segurança internacionais. Na estratégia dos EUA pós-Guerra Fria, a ONU mais parece um apêndice da política do Departamento de Estado e da estratégia do Pentágono. A morte de inocentes civis iraquianos revolta ainda mais quando se constata que o estopim da longa crise é um estratagema político de baixo calão. Paradoxalmente, enquanto o Estado americano se impõe sobre o mundo, seu chefe desce aos infernos. Acuado por uma maioria parlamentar oposicionista, incluindo diversos democratas, humilhado publicamente como jamais um presidente dos EUA o foi, Clinton é um presidente virtual, desprovido das mínimas condições para o exercício do poder na única superpotência. É inconteste a relação de causa e efeito entre sua precária posição política e o bombardeio de Bagdá. Tática secular: em face de dificuldades internas, governantes sem vestígios de moralidade e de ética tentam criar uma fictícia união nacional diante do imaginário perigo externo. Ironicamente, na Guerra das Malvinas, a Inglaterra foi o objeto desse estratagema. Enfim, apesar da longa quarentena imposta ao país, Saddam continua a comandar o Iraque com mão de ferro, inexistindo solução política que prescinda do seu poder. O ataque dos EUA é uma situação excepcional que concede ainda mais amplo e discricionário poder ao ditador. Há poucos dias, numa imagem plena de significado, um dos sanguinários filhos de Saddam recebia o título de doutor da Universidade de Bagdá. Após ter sido um importante pólo cultural do Oriente, é desconcertante a desolação do Iraque. É esse o cenário que mereceu a anuência brasileira, por meio de uma nota de apoio aos EUA subscrita pelo Itamaraty. Rasga-se a Constituição, que estipula princípios para as relações exteriores do Brasil. Diferentemente, quando a ação militar dos EUA foi autorizada pela ONU e visava auxiliar o povo, caso da intervenção no Haiti, o Brasil manifestou sua oposição. Como o modelo de Estado que defende, o desprezo do governo Fernando Henrique pela população é transnacional. Ricardo Antônio Silva Seitenfus, 50, doutor em relações internacionais pelo Instituto Universitário de Altos Estudos Internacionais de Genebra, é professor titular da Universidade Federal de Santa Maria (RS) e autor do "Manual de Organizações Internacionais" (Ed. Livraria do Advogado, 1997), entre outros livros. Texto Anterior | Próximo Texto | Índice |
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